"É raro haver uma semana em que eu não esteja envolvido com obras. Se tivesse dinheiro ia ser uma desgraça!".
Íamos num quarto de hora de conversa e já lhe tínhamos desenhado o perfil: um padre-empreiteiro. José António Almeida anui ao epíteto:
"Às vezes chamam-me isso. Por vezes alguns colegas, em sentido pejorativo. Sabe, gosto muito de obras. Quando andava no seminário trabalhava nas obras, sem qualquer pejo, a carregar baldes de massa, no duro. Numa paróquia onde estive há anos atrás remodelámos todo o telhado da igreja. Não há nenhuma telha daquele templo que não me tenha passado pelas mãos".
Hoje tem os jornalistas a bater-lhe à porta, jornais e também a televisão. Tudo por mor de uma iniciativa que não jura ser inédita no país, mas que talvez o tenha sido mesmo: os projectos "Casinhas" e "Vivendas".
Os donos das casas oferecem-nas à igreja, esta trata de as restaurar, para além de instalar equipamentos que melhoram substancialmente o conforto dos moradores. É o caso do aquecimento central, ou das rampas para acesso facilitado a deficientes.
Em alguns dos casos, com a anuência dos doadores, estes passam a contar com a companhia de outros cidadãos necessitados.
Casinhas já lá vão seis: Casinha Santo Cristo, Mãos Unidas - Padre Damião, Casa da Aninhas, Casinha Silveira Lopes, A Casinha da Julieta e Casinha José Rodrigues. Acrescentemos-lhe duas vivendas.
Alzira Matos e Henrique Teles vivem em Currelos (Carregal do Sal) há mais de 30 anos. A partir de Janeiro de 2006 a "Vivenda Teles" passou a albergar mais quatro habitantes. Esta casa é uma doação do casal Teles ao Centro Social e Paroquial de São João de Areias, após tomarem conhecimento das "Casinhas da Igreja". A casa foi adaptada às necessidades dos habitantes, melhorias que incluíram até um galinheiro.
São projectos alternativos aos lares de idosos, um novo conceito de "família". Os moradores frequentam o centro de dia, pernoitando depois na sua casinha. No caso das vivendas, os moradores passam o dia inteiro em casa, apoiados por uma empregada.
José António nasceu em Sintra, mas veio para o distrito de Viseu com sete anos. Leva 40 de idade, um quarto dedicado a S. João de Areias, onde preside ao Centro Social e Paroquial, uma Instituição Particular de Solidariedade Social de apoio à Terceira Idade. Tem as valências de Centro de Dia, Apoio Domiciliário, Apoio Domiciliário Integrado, Lar e Centros de Noite. O Centro iniciou a sua actividade em Outubro de 1997.
No conjunto das valências presta apoio a 130 pessoas, apesar do acordo com a Segurança Social não ultrapassar as 60. O orçamento anual da instituição atinge o meio milhão de euros por ano (cem mil contos na moeda antiga). Da Segurança Social recebe 180 mil euros.
"Ficam a faltar 320 mil euros, é muito dinheiro. Vamo-lo conseguindo com donativos, com actividades que organizamos, almoços de benfeitores, cortejos de oferendas, até uma feira da ladra. Todos os anos fazemos uma feira da ladra. E também temos os convívios dos Josés, das mulheres…" - adianta o pároco, lembrando a dívida que ainda resta da construção do Lar:
"São 250 mil euros. Resolvi criar o Clube dos Últimos Mil, para ajudar a pagar esta dívida. Em 2006, todos os indivíduos ou famílias que derem mil euros têm direito a uma placa com o seu nome".
A instituição já tem algumas placas nomeando benfeitores: "No início da construção, os que deram cinco mil euros ficaram com o nome num dos quartos do Lar. Outros, como o Presidente da Câmara e o arquitecto responsável pelo projecto, não deram esse valor, mas achámos que mereciam também uma placa".
Há ainda o apoio que vem dos EUA, ou que se vai lá buscar: "Temos uma grande comunidade nos Estados Unidos. Fui lá três vezes. Numa das viagens consegui arrecadar 20 mil euros" - conta-nos José António.
A obra custou um milhão de euros, o Estado entrou com 340 mil.
S. João de Areias é um meio pobre, e é com os pobres que José António conta mais: "Benfeitores são mais os mais pobres. Vieram-me as lágrimas aos olhos quando uma velhinha me veio entregar um mês da sua parca reforma, poupança que tinha feito durante um ano. Houve mais que um caso desses. Outros ofereceram o seu subsídio de férias".
O padre José António tem uma filosofia que trata de incutir aos paroquianos: "O meu lema é fazer as pessoas felizes enquanto estão vivas".
Detalha: "Revolta-me ver os caixões cheios de coroas de flores oferecidas por pessoas que nunca foram capazes de dar uma flor ao defunto quando vivo. Durante a vida foram maltratados, depois gastam-se rios de dinheiro para calar o remorso com coroas de flores. E o mesmo digo quanto aos mausoléus. Não é que eu não goste de ver o cemitério bonito, arranjadinho, é claro que gosto. Do que já não gosto é que se faça uma cultura desenfreada da morte. É só naquele bocadinho, enquanto o morto vai a enterrar. No mesmo dia, por vezes no fim do funeral já estão a discutir por causa das partilhas. É uma manifestação de hipocrisia que detesto. Daí que eu tente fazer passar a mensagem, segundo a qual à medida que nasce a solidariedade diminui a hipocrisia. E isto não é uma posição tomada pelo facto de eu ser padre. É verdade que os padres têm muito peso nestes meios. Há muita gente que pensa que eu faço isto por ser padre, mas não. É uma postura que tomaria enquanto cidadão, mesmo que não fosse padre. Devemos tratar de fazer as pessoas felizes enquanto estão vivas".
No Centro de Dia, José António trata de ir apresentando os utentes, um a um. Os que ali casaram, a senhora que resolveu "adoptar" um deficiente profundo, o velhinho que pede para o
padre lhe contar os anos, e talvez não fiquem todos bem contados porque o bilhete de identidade ficou nem ele sabe bem onde. Os casos-limite: "Aqueles ali viviam como uns selvagens, em condições miseráveis, indescritíveis. Quando lá fui buscá-los, tive que sair da casa mais do que uma vez para vomitar! Um caminhava com a cabeça encostada aos pés, babava--se o tempo todo. Pessoas que tinham uma fortuna e a desbarataram toda!"
Depois damos uma volta de carro, para ver as casinhas e as vivendas. Tira uma foto com a "madrinha" Otília, fala à janela com a velhinha que habita na Vivenda Ana do Céu Neves, reprimenda-a por não lhe ter dito nada no dia dos anos, e parte rumo à Vivenda Sobral. A dona da casa viu morrer-lhe marido e filho, hoje partilha o lar com mais três pessoas, todas apoiadas por uma funcionária do Centro Social. Por vezes a família aumenta, aparece por lá um pequenito filho de um trabalhador da instituição.
E há alguns animais de companhia, outros de criação. A cadela Joiinha ensaia morder-nos as canelas, enquanto a funcionária conta a boa nova ao padre: "O Romeu e a Julieta tiveram filhinhos, agora temos que lhes dar nome, porque aqui todos os animais têm nome". O Romeu é um coelho, a Julieta uma coelha.
Mostra-nos um jardim arranjadinho, obra da iniciativa do Centro Social mas que se encontra em local público e, naturalmente, à disposição de todos os habitantes da freguesia.
Já há casinhas com telefone, quer que todas o tenham. E todas vão ter um alarme daqueles que serve para avisar em caso de aflição.
Lamenta as dificuldades de enquadramento da sua iniciativa: "Para as casinhas e vivendas não temos qualquer acordo com a Segurança Social. Não pode ser Centro de Dia porque estão lá de noite. Não pode ser Apoio Domiciliário porque de dia eles vão para o Centro, para estarem na companhia dos outros utentes...".
O padre-empreiteiro não descansa, os olhos chispam de alegria quando fala dos novos projectos. Por exemplo, um à beira do rio, para a última doação registada: "Sonho com umas suites, uma sala envidraçada, um jardim de Inverno, três ou quatro bungalows...".
Na empreitada da solidariedade, José António vai trilhando o seu caminho. Percebe-se que é feliz argamassando fraternalmente a vida dos desvalidos.
Data de introdução: 2006-04-11