Deus fez-se homem e morreu; só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele: “Se me buscais a mim, deixai ir a estes”. E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar os outros animais do ar e da terra, que quando se achegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morrem juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, tanto que foi cortada essa árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes, mas não de tal maneira pegados, que vos metais por eles, nem morrais com eles.
Considerai, pregadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àqueles peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia?
Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pregador pelo que não comeu é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós, os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça. Mas nós lavamo-nos desta desgraça com um pouco de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores; não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voadores, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo.
Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Mas outros peixes, do alto, mata-os o anzol ou a fisga, a vós, sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho, Vai o navio a navegar e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das antenas e cair morto.
Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição.
O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe.
Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há, nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar.
A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes! Contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo,, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-lhe a queimar as asas.
À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade.
Santas Páscoas para todos!
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