Maria, chamemos-lhe assim. Tem 70 anos, é solteira e vive com o sobrinho, que é casado. A idade trouxe-lhe alguns problemas de mobilidade, mas está bem de saúde e tem autonomia para fazer as tarefas diárias, embora isso não aconteça. Vive numa casa que já foi sua, antes de a terem persuadido a assinar um documento onde prescindia da propriedade a favor do sobrinho. Também deixou de administrar a própria conta bancária, onde, todos os meses, recebe a pensão de reforma. Com lágrimas nos olhos, a septuagenária, não sabe explicar como é que tudo aconteceu. A família quer pô-la num lar e apesar de ter mostrado resistência, agora já não se importa. "Eles que fiquem com a casa, com o dinheiro, com tudo, já não me importo. Só quero viver em paz o resto dos meus dias", confessa tristemente.
Maria fez parte de um estudo realizado o ano passado sobre maus tratos a pessoas idosas, que vivem em meio familiar, desenvolvido na cidade de Braga. José Ferreira Alves, docente do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho e responsável pela investigação, acredita que a amostra revela a "ponta de um iceberg". Num universo de 104 entrevistas efectuadas a pessoas com mais de 65 anos de idade e em três centros de dia, 73,1 por cento revelou ter sido, pelo menos uma vez, vítima de abuso físico, emocional, financeiro ou negligência. Os núme-ros mostram uma realidade desconhecida e fazem abanar consciências. 22,1 por cento já foi vítima de maus tratos, 14,4 por cento sente-se ameaçada, 5,8 por cento foi forçada a comer e 27,9 por cento têm um tratamento silencioso, ou seja, os familiares cortaram os laços afectivos com essa pessoa.
É no seio da família que os maus tratos ocorrem com mais frequência e os filhos estão no topo da lista dos agressores. O mau trato que mais prevalece é a negligência e o abuso emocional. "A sociedade não valoriza os idosos e tende a tratá-los de forma pouco correcta", afirma José Ferreira Alves.
A solidão alastra de forma alarmante nesta faixa etária. Mais de 40 por cento dos inquiridos afirmam sentir-se sempre sozinhos e 27 por cento queixam-se de não existir diálogo com aqueles com quem partilham a casa. Para agravar este isolamento, 22 por cento são vítimas de violência verbal sempre que discordam do seu cuidador e mais de 14 por cento são ameaçados de que serão colocados em lares.
Embora não exista uma vítima-tipo, Ferreira Alves adianta que "as mulheres idosas, com menos escolaridade, são mais abusadas que os homens, em termos físicos e emocionais". O investigador acrescenta ainda que "os dados mostram que são as pessoas com idade mais avançada que referem mais indicadores de abuso físico e emocional".
Mónica Sousa, psicóloga, realizou o trabalho de campo neste estudo e encontrou histórias difíceis de ignorar. "Havia uma pergunta que questionava se alguma vez tinham sido forçados a comer contra a sua vontade. Muitas pessoas responderam que não, mas tinham os olhos cheios de lágrimas", relembra a psicóloga. Mónica Sousa alerta para uma caso que a marcou muito. Uma senhora, com perto de 70 anos, que morava com a filha única, o genro e os netos. A idosa apresentava os quinze items de abuso avaliados no estudo. "Ela afirmou que a filha lhe batia, já a tinha empurrado das escadas e que a trancava com frequência no quarto", explica a psicóloga. A idosa referiu ainda que se, por exemplo, não queria comer, a filha obrigava-a e para isso deitava-lhe piri-piri na boca. "A senhora passava o dia no centro e à noite tinha sempre muito medo de ir para casa. Foi o caso mais delicado que encontrei", acrescenta. Questionada sobre o facto de as autoridades competentes já terem tido conhecimento do caso, a psicóloga afirma que sim, mas sublinha a impossibilidade de actuação. "Para retirar um idoso do seio familiar é necessário que este ou esteja acamado ou não faça uso pleno das suas capacidades mentais. Se não se verificar nenhuma destas condições, mesmo que uma terceira pessoa faça uma denúncia de maus tratos as autoridades não podem agir, pois a denúncia para ser válida tem que ser feita pela vítima, o que, só muito raramente, acontece", explica.
Mónica Sousa acredita que é necessário consciencializar a socie-dade para esta matéria, inclusivamente as vítimas. "Existe uma grande tendência para se pensar que, por se estar em família, tudo é permitido. A vergonha social tem que ser afastada", afirma. O coordenador do estudo, Ferreira Alves, vai mais longe. "Há muito conhecimento informal, por exemplo, dos hospitais, das institui-ções, das igrejas, etc., nesta área, mas é um conhecimento muito disperso e difuso. Não existe nenhum organismo que faça o reconhecimento desta problemática, portanto, é como se ela não existisse", explica o investigador. O docente universitário acrescenta que só recentemente é que o tópico dos maus tratos a idosos começa a aparecer nos livros de gerontologia, como área de estudo autónoma. Em termos internacionais existe uma organização não governamental, a International Network for the Prevention of Elder Abuse (INPEA), cujo principal objectivo é alertar o público em geral para este problema social. Ferreira Alves acredita que em Portugal começa a haver alguma consciencialização, mas "enquanto não tivermos um organismo que acompanhe esta problemática, os avanços serão poucos", defende.
Para o docente, não existe ainda uma cultura que dê sinais evidentes de que a sociedade protege a pessoa idosa, como já o faz com as crianças, por exemplo. "O idoso não denuncia porque tem medo de perder a única relação que tem com o cuidador, mesmo que seja uma má relação. Tem medo de não ser acreditado, que o considerem culpado e tem muita vergonha social", explica.
Quanto às classes mais afectadas pelo flagelo, apesar de não fazer parte do estudo realizado, Ferreira Alves acredita que é um problema transversal a todas as classes sociais. Ao efectuar uma análise aos factores de risco há que considerar as variáveis, tanto da parte do cuidador como do idoso. Segundo a maioria dos especialistas na matéria, os principais factores de risco da parte do cuidador para a ocorrência de maus tratos são: a existência de problemas comportamentais; o cuidador depender financeiramente da pessoa idosa; ter problemas mentais ou emocionais; ser alcoólico ou toxicodependente; ter conflitos conjugais, entre outros. "É devido a esta multiplicidade de factores que considero que seja um problema transversal. A miséria não é a nível económico, mas sim emocional", afirma.
Apesar da gravidade dos resultados, Ferreira Alves considera que "os dados revelados têm que ser levados a sério, mas não podem ser hipervalorizados, dado que se restringem a uma amostra muito pequena". O investigador alerta para a necessidade de realizar um estudo deste género a nível nacional. "A proposta já foi feita à Fundação do Ministério de Ciência e Tecnologia, mas o projecto foi recusado. Vou voltar a candidatar-me este ano", afiança Ferreira Alves.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) teme que o aumento do número de idosos no mundo agrave as situações de violência relacionadas, principalmente, com a ruptura de laços tradicionais entre gerações e com o enfraquecimento dos sistemas de protecção social. Em Portugal, metade dos suicídios são praticados por idosos. Os números mais recentes, apresentados num estudo da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (SPS), referem que entre 1996 e 1999 registaram-se cerca de 540 suicídios por ano, sendo que metade foram cometidos por pessoas com mais de 60 anos.
Ferreira Alves propõe duas medidas essenciais para combater esta pro-blemática. Em primeiro lugar, a criação de um instituto que faça o acompanhamento do problema. "Será preciso uma equipa multidisciplinar, com juristas, psicólogos, forças policiais, que forme uma entidade que tenha poder para confirmar o abuso e agir em conformidade", diz o especialista. "Para além disso, é necessário agir em termos legislativos para proteger legalmente os idosos", acrescenta.
Segundo o Censos de 2001, Por-tugal está a envelhecer. A população idosa com 65 ou mais anos representava 16,4 por cento da população total. Daqui a cerca de 40 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, um em cada três portugueses vai ter 65 anos de idade ou mais. Números preocupantes, num dos países mais envelhecidos da União Europeia, e que começam a deixar transparecer uma realidade escondida aos olhos da sociedade.
Data de introdução: 2006-06-08