CENTRO DE NOITE DE GARFE, NA PÓVOA DE LANHOSO

Dormir fora de casa é uma aposta diferente no apoio aos mais idosos

É véspera de S. João! À chegada ao pequeno outeiro sente-se o cheiro das sardinhas na brasa e ouve-se a voz estridente de uma mulher que canta quadras populares num altifalante. Há bandeirolas às cores a enfeitar o pátio, onde se agitam os últimos preparativos para a ceia em honra do santo popular. Hoje, não há missa! “Foi de manhã”, explica o senhor João, enquanto trinca um naco de broa caseira, justificando rapidamente o sucedido, para que não restem dúvidas do exercício correcto dos deveres cristãos.

A rotina diária foi alterada. Passa meia hora das seis da tarde. Cheira a caldo verde e a manjerico no ar. Ouvem-se conversas animadas à volta de uma mesa comprida propositadamente montada para o dia de hoje. A Ford Transit cinzenta foi buscá-los a casa mais cedo do que o habitual. “Costuma ser pelas seis horas, mas hoje foi às cinco e meia”, explica-nos outra vez o senhor João, interrompendo uma conversa com a companheira do lado.
Estamos no Centro de Noite de Garfe, na Póvoa de Lanhoso (distrito de Braga), o primeiro do género a nascer no país e que recebe, diariamente, doze pessoas para pernoitar. Criados para apoiar idosos autónomos, os centros de noite estão definidos pela Direcção-Geral de Solidariedade e Segurança Social como “casas de acolhimento nocturno, prioritariamente para pessoas idosas com autonomia”, que necessitam de acompanhamento durante a noite e que de manhã regressam ao domicílio. “Há muita gente idosa que está sozinha em casa. Durante o dia, sempre vão passando o tempo no quintal, a mexer um bocadinho com a terra, com os animais…Mas quando chega a noite, é que surge o grande problema, sobretudo no Inverno, com noites enormes e muitas horas a fio de solidão”, explica-nos o padre Luís Fernandes, director do Centro Social e Paroquial de Garfe, onde está integrado o centro de noite.

Dos três centros de noite que surgiram no país em 2002 (Garfe, S. Romão, em Vila Viçosa e Sabugueiro, no concelho de Seia), apenas este recebe os idosos durante a noite e volta a levá-los a casa pela manhã. Existem mais de meia centena de projectos aprovados pela Segurança Social e com abertura prevista durante este ano, mas o que acontece, frequentemente, é que os centros de noite acabam por se transformar em lares convencionais. Com a avançar da idade, os idosos perdem cada vez mais a autonomia, que aliada à solidão, à doença e ao isolamento faz com que também acabem por permanecer durante o dia na instituição, aumentando as despesas e obrigando à mudança do estatuto legal.

O padre Luís não tem dúvidas ao afirmar que a “ideia [do centro de noite] não está velha”, mas lá vai dizendo que já tem pessoas que gostavam de permanecer ali durante o dia. “Temos pensado na possibilidade de transformar o centro de noite num mini-lar, mas neste espaço não temos condições para isso”, confessa o pároco de Garfe.
No pátio do centro, a festa continua animada. As auxiliares distribuem sardinhas pelos pratos, enquanto enchem algumas canecas com vinho e outras com sumo, porque há quem já não beba álcool. Os sinos da igreja, de portas meias com a instituição, assinalam as sete da tarde. As conversas continuam, abafadas pelo som da música popular. Maria diz-nos que tem dois nomes: Maria pelo registo civil e Emília pelo baptismo. Está no centro há dois anos, juntamente com o irmão, João Nogueira. Embora seja solteira, conta-nos com mágoa que tem “muita família, mas ninguém se importa de nós”. “Tínhamos muito medo dos ladrões e aqui estamos seguros, gostam de nós”, afiança a sexagenária, que faz questão de explicar o processo. “Vão-nos buscar de carrinha e trazem-nos para cá para dormirmos e depois no outro dia levam-nos de volta a casa” e acrescenta de seguida que apesar de estar um bocado coxa ainda cozinha e lava, “ainda faço a minha vida”.
Na outra ponta da mesa, Rosa Veloso, de 64 anos quer-nos dizer que está ali desde o primeiro dia. “Vim para cá, porque sentia-me muito só. Aqui tenho conforto e ajuda”, conta com um brilho triste no olhar e enumera de seguida uma série de maleitas que sofre.

A solidão, o isolamento e a falta de condições mínimas de habitabilidade nas residências são as principais razões apontadas por Liliana Vieira, para a vinda dos idosos para o centro de noite. Responsável pela organização e gestão do pessoal e utentes, Liliana encarrega-se dos aspectos mais práticos da manutenção do centro. Tratada por menina pelos mais velhos, a jovem não tem dúvidas em apontar a solidão e a insegurança como as principais razões que os move a frequentar a instituição. “Grande parte destas pessoas têm filhos, mas são emigrantes ou vivem longe da terra. Infelizmente, temos cá pessoas que nem no dia de Natal têm uma visita de um familiar, o centro tornou-se na sua família”, conclui.

Inaugurada em 2002, a instituição possui seis quartos duplos e funciona entre as 18 horas e as 9 horas da manhã. A despesa média com cada utente ronda os 340 euros por mês, sendo que cada um deles comparticipa com um valor entre os 50 e os 102 euros mensais. “É uma população muito pobre, com muitas carências”, esclarece Liliana Vieira. Para muitos a vinda para o centro traduz-se também num processo de reeducação e de assimilação de novas práticas. “Temos cá um casal, os últimos utentes a entrar em Fevereiro passado, que nunca tinham visto um autoclismo nem sabiam para que servia”, exemplifica a técnica.

Na mesa já se batem palmas e as auxiliares convidam os mais velhos a um pézinho de dança. São oito da noite. Em dias normais, já teriam rezado o terço em conjunto e estariam a ver televisão e a conversar na sala de convívio, antes de irem dormir por volta das dez da noite. Apesar de ser uma valência social que só agora começa a ganhar expressão, o centro de noite de Garfe já tem lista de espera. Quatro pessoas aguardam a entrada no centro, com pedidos formalizados, mas a lista estende-se aos contactos informais. “Há várias pessoas que gostavam de vir para cá, mas só temos 12 camas. Não temos capacidade de dar resposta aos pedidos”, explica Liliana.

Agora, com o sol a descer no horizonte, contam-se histórias de outros tempos, de outros S. Joões, onde a sardinha podia faltar, mas a alegria de viver era muito mais forte. Amanhã, bem cedo, a Ford Transit cinzenta estará de novo pronta para levá-los a casa. Para alguns, o regresso ao lar significa o retomar de um quotidiano que os faz sentir vivos, parte integrante da sociedade… Para outros é apenas mais um dia de espera até à volta da carrinha cinzenta que os leva, de novo, ao aconchego e segurança do centro.

 

Data de introdução: 2006-07-09



















editorial

NO CINQUENTENÁRIO DO 25 DE ABRIL

(...) Saudar Abril é reconhecer que há caminho a percorrer e seguir em frente: Um primeiro contributo será o da valorização da política e de quanto o serviço público dignifica o exercício da política e o...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Liberdade e Democracia
Dentro de breves dias celebraremos os 50 anos do 25 de Abril. Muitas serão as opiniões sobre a importância desta efeméride. Uns considerarão que nenhum benefício...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Novo governo: boas e más notícias para a economia social
O Governo que acaba de tomar posse tem a sua investidura garantida pela promessa do PS de não apresentar nem viabilizar qualquer moção de rejeição do seu programa.