OCTÁVIO CUNHA, MÉDICO, COMISSÃO NACIONAL DE SAÚDE MATERNO NEONATAL

Nos hospitais que estão a ser encerrados não há condições mínimas para se nascer

SOLIDARIEDADE – A quantas comissões de avaliação da saúde materno-neonatal pertenceu?
OCTÁVIO CUNHA
– A todas. A primeira nem sequer tinha nome. Foi criada a pedido da ministra Leonor Beleza. Um pequeno grupo de pessoas, do Porto, trabalhou pelo país inteiro, para saber como se nascia em Portugal. A primeira conclusão, em 1985/86, era que se nascia muito mal. Éramos, e fomos até 1995, o país da Europa com a mais alta mortalidade infantil. Morriam, dependendo das regiões, entre 15 a 22 crianças por cada mil. Por cada uma que morria havia três crianças que sobreviviam com paralisias cerebrais. Era outro drama nacional.

SOLIDARIEDADE – Deve ter visto situações por esse país fora verdadeiramente dramáticas…
OCTÁVIO CUNHA
– Absolutamente inacreditáveis. Sítios onde se nascia sem médicos, sem obstetras, pediatras muito menos. Às vezes não havia água, outras não havia luz. Nascia-se em qualquer canto de uma maneira imprópria e nascia-se demasiado em casa sem condições nenhumas. Na base desse relatório apresentado à ministra foi criada em 1989/90 a primeira Comissão Nacional Materno Neo-natal, era assim que se chamava. Essa comissão muito rapidamente apresentou o primeiro programa nacional de intervenção no sentido de se nascer em Portugal com mais segurança. O programa foi aceite e executado. Encerraram-se mais de 150 sítios onde se nascia sem condições e criaram-se 45 hospitais, divididos em duas categorias: os de apoio perinatal, os distritais, e os de apoio perinatal diferenciado, os hospitais centrais. Gastou-se qualquer coisa correspondente a um quilómetro de auto-estrada. Cinco anos depois os resultados ultrapassaram as expectativas: Tínhamos erradicado a asfixia e tínhamos diminuído a mortalidade infantil para metade, passando para 9 por mil. Foi criada uma comissão para a criança e adolescente. Tudo parou quando Manuela Arcanjo foi ministra. Fora isso a comissão nunca esteve inactiva. Eu sou o único sobrevivente de todas as comissões. Chegámos a 2005 e do último país da Europa, com maior mortalidade infantil, passámos ao grupo de países no mundo que está em quinto lugar com a mais baixa mortalidade infantil. À nossa frente temos países como a Islândia, a Noruega, a Dinamarca, a Suécia, os países nórdicos. Estamos a uma diferença pequena. Eles têm uma taxa de 2,9/3 por mil e nós estamos nos 3,8 por mil. Esta pequena diferença deve-se a uma causa que persiste em Portugal que são os acidentes.

SOLIDARIEDADE – Sobretudo os acidentes de viação?
OCTÁVIO CUNHA
– Sim, mas também outros, como afogamentos e acidentes de outro tipo. Há mais de dez anos que eu disse que morre, no nosso país, um avião cheio de crianças e morrem todas. Como caiem devagarinho ao longo do ano, desde Faro até Valência não é nunca notícia. Conseguiu-se implementar uma série de leis de protecção à criança, como por exemplo a utilização das cadeirinhas, e fazem-se campanhas de regulares de sensibilização.

SOLIDARIEDADE – Na mais recente fase de transposição dos resultados das comissões técnicas para a tomada de decisão política tem havido alguma convulsão social. A que se deve?
OCTÁVIO CUNHA
– Se compararmos 1990 com 2005 temos a demonstração de que era preciso tomar medidas. Em 90 nasciam em Portugal cerca de 230 mil crianças por ano e os profissionais tinham menos quinze anos do que em 2005. Em 15 anos a nossa natalidade baixou de forma dramática. Em 2005 nasceram 109 mil crianças, uma quebra de mais de metade. Por outro lado temos um envelhecimento dos profissionais. Os médicos a partir dos 50 anos podem meter um papel que lhes permite a isenção de trabalhar de noite. Eu achou que nessa idade são muito novos, mas a lei permite e depois vêmo-los a trabalhar nesses hospitais que agora estão a encerrar… Entretanto, apesar disso, o número de hospitais onde se nasce aumentou. Apareceram novos hospitais. Ora, isto não faz sentido. Era preciso tomar medidas. Os hospitais que estão a ser encerrados não têm, de facto, condições mínimas para se nascer.

SOLIDARIEDADE – Que condições mínimas são essas?
OCTÁVIO CUNHA
– Para se nascer bem é preciso que um hospital tenha cerca de 1500 partos por ano. Não é um número mágico. É um número médio, consensualmente aceite a nível internacional, que permite aos profissionais fazer um número de partos suficiente para serem confrontados com situações raras, mas que acontecem, e estarem preparados para as resolver de maneira a que não aconteça nada à mulher nem aconteça nada de grave à criança. É muito importante a preparação e a formação contínua das pessoas. Condição mínima é também a presença física nos hospitais onde se nasce de dois obstetras, de um anestesista e de um pediatra, com formação em neonatologia, e particularmente em reanimação precoce que é extremamente importante.

SOLIDARIEDADE – E o país não tem esses recursos humanos?
OCTÁVIO CUNHA
– O país só tem se concentrar os meios, de maneira a que não existam hospitais a terem 300 partos, 600 partos, 800 partos. Não tem mais sentido num país com esta dimensão. Hoje tomamos o pequeno-almoço em Valença e, sem infringir o códiga da estrada, vamos almoçar a Faro. Nós vivemos num país muito pequeno. Em Espanha há maternidades que serve num raio de 300, 400 quilómetros à volta.

SOLIDARIEDADE – Agora, em 2006, trata-se de fazer uma redução considerável...
OCTÁVIO CUNHA
– A Comissão Nacional já tinha proposto ao ministro anterior, dr. Luís Filipe Pereira, estas medidas que estão agora a ser tomadas pelo dr. Correia de Campos. No fundo, pretende-se concentrar em hospitais que têm todas as valências, tudo o que é necessário para o apoio à grávida, e encerrar as pequenas maternidades que não têm condições. São 11. Póvoa do Varzim Santo Tirso, Barcelos, Elvas e Oliveira de Azeméis já fecharam, Lamego não vai reabrir porque não tem médicos, Mirandela vai encerrar no final do ano. Em Castelo Branco, Guarda e Covilhã, uma delas tem que encerrar... Na maior parte dos casos já muitos nascimentos que ocorrem longe do local de residência.

SOLIDARIEDADE – Está convencido que esta reestruturação favorece os que têm menos possibilidade de escolha. Favorece os mais pobres...
OCTÁVIO CUNHA
– O ministro da saúde na primeira reunião que teve connosco foi muito claro. Pediu que fosse preparado um plano que garanta a qualidade do nascimento e a qualidade do seguimento da gravidez. Pediu que não fosse tido em conta os custos mas apenas a qualidade. A proposta que foi feita foi nesse sentido. As mulheres já estão a pereceber que nascer em Santo Tirso não é a mesmo coisa que nascer em Famalicão. Há outras condições médicas e sanitárias...

SOLIDARIEDADE – Esta tendência de concentração colide com algumas tendências políticas de sinal contrário. Muitos defendem a descentralização como forma de resolver problemas do país...
OCTÁVIO CUNHA
– É um movimento de concentração mas não é de perda de emprego. Os profissionais se quiserem deslocar-se para esses hospiatis podem deslocar-se. Se quiserem continuar nos que estão, ficam...

SOLIDARIEDADE – Não incentiva a deslocalização profissional...
OCTÁVIO CUNHA
– Já se nasce tão pouco nesses sítios. Não se vai nascer mais. A quebra da natalidade é permanente. Neste momento não há outra solução.

SOLIDARIEDADE – E a ligação afectiva ao sítio onde se nasce?
OCTÁVIO CUNHA
– Nós somos europeus. Nascer hoje na Alemanha, nascer em França ou nascer em Portugal é quase a mesma coisa. Somos cidadãos da Europa.

SOLIDARIEDADE – Não considera um factor importante de identidade cultural...
OCTÁVIO CUNHA
– Os meus filhos nasceram na Suiça e acho que foi um privilégio para eles. Correram menos riscos. Hoje nós temos uma mortalidade infantil inferior à da Suiça. Conseguimos neste sector criar uma ilha de progresso num país ainda muito marcado por uma cultura de falta de rigor e responsabilidade. Quando apresentamos internacionalmente os nossos resultados as pessoas quase não acreditam. Nós somos o único país do mundo que tem um serviço permanente, que funciona 24 horas por dias e 365 dias por ano, de transporte de recém-nascidos de alto risco. Poucas pessoas sabem disto. O ano passado, aqui no Norte, transportámos 380 crianças dos hospitais periféricos. O que nós queremos é que, quando há gravidez de risco, a mãe venha com o seu filho dentro da barriga para o hospital onde vai nascer porque diminuímos, ainda mais, os factores de risco: o transporte. Com a nova organização dos hospitais são-nos impostos critérios, números de internamentos, duração média de permanência das crianças, taxas de ocupação… Eu, como director de serviços, tenho que me preocupar com isso mas, como profissional da área estes números não têm valor algum. Não me interessam nada. Quanto menos crianças eu internar neste serviço melhor. È porque não há necessidade.

SOLIDARIEDADE – Portanto, não valoriza de todo...
OCTÁVIO CUNHA
– Nós tivemos esse problema, logo no início, entre Póvoa de Varzim e Vila do Conde. Os cidadãos de Vila do Conde não queriam ir nascer à Póvoa. Diziam que os de lá eram “polacos”. Não queriam que os filhos fossem “polacos”. Nós, nessa altura, propusemos à Assembleia da República uma legislação que permite desde então a qualquer cidadão português não só escolher o local onde se nasce mas, se nasce longe da sua pequena aldeia e quer registar o filho naquele sítio pode fazê-lo.

SOLIDARIEDADE – Os bebés que nascem em Badajoz são portugueses…
OCTÁVIO CUNHA
– Os que nascem em Badajoz e noutros sítios... Mas a mim isso não me preocupa. O que me preocupa é que uma criança nasça mal. Que não tenha condições para nascer e que uma mãe possa morrer durante o parto. Isso é que não pode acontecer. Badajoz, num raio de 200 quilómetros, não tem mais nenhuma maternidade. Sabe, nesta questão também vem ao de cima uma certa mentalidade do português. Todo o português quer ter um centro de saúde ao lado de casa, uma farmácia em frente, o talho ao lado, quer ter uma quinta pequenina onde vai cultivar meia dúzia de pés de batata, meia dúzia de couves galegas e uma vinha que dá uma zurrapa sem qualidade. Ao lado tem um vizinho que faz a mesma coisa. Ambos são incapazes de se juntarem e criarem qualquer coisa que seja rentável. Os espanhóis já pensam de outra maneira há muitos anos... Para quê ter serviçozinhos por toda a parte que funcionam mal? Nós estamos a gastar 20 milhões por dia com a saúde e somos ineficazes e desperdiçamos os poucos meios que temos. Alguém tem que cuidar disto. Não há governo nenhum que aguente uma despesa destas que aumenta todos os anos sem subir os impostos... Os portugueses já não aguentam.

SOLIDARIEDADE – Não há uma tendência europeia recente que defende a ideia de que nascer bem é nascer em casa?
OCTÁVIO CUNHA
– Não faz sentido nenhum neste momento. Poderá fazer sentido na Holanda onde isso se pratica. Há unidades móveis de apoio à grávida que quer ter o seu filho em casa. Tem médico, tem enfermeira, tem o equipamento necessário para que se acontecer qualquer coisa poder rapidamente acudir a mãe ou a criança. E tem mais: durante um tempo fica em casa daquela senhora uma espécie de enfermeira que a vai apoiar. Mesmo assim a Holanda tem uma mortalidade infantil superior à nossa.

SOLIDARIEDADE – Aquela imagem bucólica do nascimento em casa já não faz sentido...
OCTÁVIO CUNHA
– Na minha família, nós somos dez irmãos, nascemos em casa, sobrevivemos todos mas era um tempo diferente. Neste momento não tem sentido. Mesmo em grande parte das clínicas privadas o governo vai ter que tomar urgentemente medidas, no sentido de as fiscalizar e de ver se elas estão a cumprir a lei. A grande maioria não está. Não têm obstetras em permanência, não têm anestesistas e neonatologistas em permanência.

A medicina não é uma ciência
A medicina é uma maneira de estar


SOLIDARIEDADE – Noutro sentido, porque é que se regista um aumento brutal do número de cesarianas?
OCTÁVIO CUNHA
– Por várias razões. Uma, são as mães que querem; há mais gravidezes de risco; e depois há factores de interesse económico por parte dos profissionais. Uma cesariana demora 20, 30 minutos. Pode-se marcar o dia, a hora, pode-se marcar tudo. Se querem descansar ao fim-de-semana marcam a cesariana para sexta-feira... Sai mais cara à família do que um parto normal. Um parto natural pode obrigar a equipa obstétrica a permanecer uma noite inteira à espera. As coisas seguem o seu curso normal. Devia haver sempre uma indicação médica para fazer-se uma cesariana. E devia apostar-se na fiscalização. O médico tem que ser responsabilizado se devia ter feito uma cesariana e não fez; e devia sê-lo também se fez e não precisava de ter feito... E olhe que nós vamos muitas vezes buscar prematuros às clínicas privadas...

SOLIDARIEDADE – Os limiares da prematuridade, da vida, cada vez baixam mais...
OCTÁVIO CUNHA
– Sim, é verdade. Agora estão entre as 24 e as 25 semanas, para nós. Antes das 24 semanas, se o bebé sobreviver, nós utilizamos os conceitos éticos que têm sido desenvolvidos internacionalmente. Eles acham que deve ser dada uma oportunidade a uma criança que nasce viva, mas esta hipótese, do ponto de vista ético, não deve ultrapassar os limites. Não deve haver aquilo a que se chama o “encarniçamento” terapêutico. Se um bebé destes faz bruscamente, como acontece quase sempre, uma hemorragia cerebral, se sobreviver, no futuro, ele não vai andar, não vai rir, não vai falar, não vai ver, talvez também não ouça, vai destruir uma família. Nós não temos o direito nestas circustâncias, do ponto de vista ético, do ponto de vista moral, do ponto de vista humano, não temos o direito de continuar a ventilar esta criança só para dizer “não morreu”. Mas que vida é que lhe está destinada? Que impactos é que vai ter sobre uma família? Nós não somos deuses. Somos pessoas humanas que temos de nos pôr no lugar dos pais. Isto é uma eterna discussão e haverá defensores do contrário, mas estamos a aprender todos os dias.

SOLIDARIEDADE – É sempre uma decisão penosa...
OCTÁVIO CUNHA
– No meu serviço há uma regra: Nunca interrompemos os cuidados intensivos a uma criança se todo o pessoal não estiver de acordo. Se houver um único que não esteja de acordo pára tudo e continuamos. É um stresse tremendo mas quando, passados uns anos, estas crianças que foram prematuras aqui no serviço, com 400, 500 gramas nos entram a correr pela sala nós dizemos...“valeu a pena!”
Nós somos uns privilegiados e eu digo-o aos alunos de medicina. Nós temos que fazer cumprir o lema da Escola Abel Salazar, do próprio Abel Salazar, que diz que quem só sabe de medicina nem medicina sabe. Ela era um grande humanista, pintor, escultor, escritor, tantas coisas, e era um bom profissional. Nós hoje, se calhar, estamos a gerar profissionais que podem não ser bons médicos. A medicina não é uma ciência. A medicina é uma maneira de estar.

SOLIDARIEDADE – Tem 63 anos, é Director de Serviços no Santo António, é pediatra, faz urgências… Quando vai parar?
OCTÁVIO CUNHA
- No dia em que sentir que posso não estar a fazer bem vou-me embora. Criei o Serviço de Neonatologia no Santo António sozinho. Estive aqui dois anos sozinho, com uma dúzia de enfermeiras, sem fins-de-semana. Sem férias. Neste momento posso ir-me embora com a consciência tranquila porque hoje no Serviço todos sabem mais do que eu. No início os bebés mais pequeninos chegavam aqui em caixas de sapatos, enrolados em algodão; vinham muitas crianças de Trás-os-Montes, vinham às vezes nos cestos de vindimas embrulhados em trapos. Muitos chegavam mortos ou então em situações irrecuperáveis. Quando abri este Serviço morriam mais crianças por mês do que agora nos morrem por ano, muitas mais. O que eu fiz de melhor foi isso: ajudar a formar pessoas que hoje sabem mais do que eu. Posso ir-me embora em qualquer altura.

 

Data de introdução: 2006-09-03



















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