ARMANDO LEANDRO, PRESIDENTE DA C. N. DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM RISCO

Não se deve diabolizar a institucionalização mas são necessárias instituições de outro tipo

SOLIDARIEDADE – No passado mês de Setembro fez um ano que assumiu funções à frente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco. Que balanço faz do trabalho desenvolvido?
ARMANDO LEANDRO
- Faço um balanço muito positivo. O grande mérito está nas pessoas que trabalham nas diversas comissões que não desistiram, apesar todas as dificuldades, do efeito público culpabilizante, nalguns casos infelizes, e que assumiram o seu papel como representantes de cada uma das comunidades com o intuito de que é indispensável constituírem-se como elementos importantíssimos para radicarem uma nova cultura da infância e da juventude, centrada não numa visão existencialista, mas numa visão dos direitos fundamentais da criança e do jovem, como titulares de uma cidadania plena do ponto de vista do outro.

SOLIDARIEDADE – Para si, que lidou com áreas mais ligadas à justiça e menos ao campo social, esta é uma experiência que, ao fim de um ano, tem sido gratificante?
ARMANDO LEANDRO
- Tem sido gratificante e tem sido orientada por uma esperança de que são possíveis progressos nítidos mais rápidos nesta área, principalmente na mobilização do Estado e da comunidade em geral. Tenho alguma experiência na medida em que fui juiz de menores e de família, tenho também trabalhado com associações que intervêm nesta área. Esta tem sido para mim uma aprendizagem feliz, às vezes difícil, mas na qual ponho esperança. Naturalmente que a minha intervenção é uma intervenção modesta, mas acredito que é possível radicar a cultura da infância, numa ética da discussão, ou seja, ultrapassarmos a nossa visão apenas subjectiva por um paradigma em que sejamos capazes de pôr lealmente as nossas capacidades argumentativas a favor de um progresso no pensamento e na acção para assim conseguirmos soluções de consenso sérias e que correspondam à actividade. Também uma ética da qualidade, de serviço e não de poder. É interessante como nesta área é fácil evitar a partidarização, embora haja essa tentação, mas à qual se foge facilmente porque está em causa algo muito essencial ao nosso futuro.

SOLIDARIEDADE – A Comissão sempre sofreu de falta de meios. O governo prometeu ajudar. É o que está a acontecer?
ARMANDO LEANDRO
- Vem acontecendo. Há realmente um plano estratégico de intervenção relativamente à infância e à juventude, com a intenção já anunciada pelo Executivo, de elaborar um plano transversal para uma política integrada da infância e da juventude. Têm-se registado melhorias quanto aos meios disponíveis para as comissões de protecção de crianças e jovens. Existe uma tentativa de sensibilizar todas as entidades representadas na comissões - municípios, centros de saúde, entidades ligadas à educação, instituições particulares de solidariedade social – por forma a indicarem pessoas com perfil para o exercício dessas funções e reiterarem o carácter prioritário das mesmas, o que ainda não está conseguido. Estão também prestes a iniciar as funções 128 técnicos que foram contratados para reforço técnico das comissões. Além disso, há um protocolo celebrado entre a Segurança Social e o Ministério da Educação, em que o Ministério da Educação revê a forma de ligação com as comissões. Assim, até 150 processos há um professor, como já havia, mas com disponibilidade para integrar sempre a modalidade de tutor. O tutor é uma figura que já consta da legislação e que tem sido pouco desenvolvida, mas que vai sê-lo de forma determinante. Tem sido feito um trabalho excelente no sentido de intervir junto dos agrupamentos educativos para que haja a prevenção primária de situações de abandono, insucesso escolar e que, por outro lado, detectem aqueles casos de perigo e assim actuar-se através da escola como uma primeira linha de intervenção.

SOLIDARIEDADE – Tem sido um defensor da necessidade do reforço dos agentes policiais envolvidos nas comissões.
ARMANDO LEANDRO
- Sim, embora também se registem aspectos positivos nessa área. Há quase generalizadamente uma intervenção de muito relevo das actividades policiais. São agentes de muita importância nas comissões com um sentido de intervenção social muito acentuado e que dão suporte a determinadas acções, nomeadamente, em situações de emergência. Outro elemento, que também será modificado, diz respeito à formação, que neste momento já está a decorrer. A Comissão Nacional formou 76 formadores que constituíram núcleos distritais e que vão a todas as comissões divulgar os conceitos básicos, a missão, os valores, os princípios, as estratégias e as acções que importa desenvolver, reforçando a competência das mesmas.

SOLIDARIEDADE – Há uma ideia generalizada de existem cada vez mais casos de violência sobre as crianças. É de facto uma ideia verdadeira, ou o que existe é uma maior mediatização e denúncia dessas situações?
ARMANDO LEANDRO
- Pessoalmente estou convencido de que não existem mais casos, mas é evidente que os contextos sociais complexos são propícios a que eles aconteçam. O que acontece é que eles são mais denunciados, porque cada vez mais há a noção colectiva acentuada da inadmissibilidade da violação dos direitos das crianças. Há também os casos mediáticos, que todos nós conhecemos e que alertaram ainda mais para a gravidade de algumas violações de direitos das crianças e que sensibilizaram a opinião pública para este tema. O facto de haver mediatização dos casos não é mau, o que é mau é que não se respeite a disposição legal de que não se pode identificar a criança e a família.

SOLIDARIEDADE – Em termos estatísticos como é que Portugal está posicionado em relação à União Europeia e ao Mundo?
ARMANDO LEANDRO
- Nós não temos mais casos do que a maioria dos países, mas temos muitas deficiências no método de elaboração das estatísticas. Por exemplo, considera-se como causa indeterminada de morte, a morte por via dos maus-tratos, o que é uma interpretação perfeitamente abusiva e que nos coloca indevidamente num lugar que não é o nosso. Claro que devemos ter o cuidado, e já há estudos da Direcção-geral de Saúde, em adaptar as nossas estatísticas à realidade para que não possa haver extrapolações.

SOLIDARIEDADE – Enquanto especialista nestas matérias, fala muito numa nova cultura da infância. A que é que se refere em concreto?
ARMANDO LEANDRO
- Na nova cultura da infância um dos agentes principais é a própria criança. Uma das evoluções muito positivas que se verificaram é o reconhecimento através da ciência e da investigação de que a criança é um ser interactivo desde a própria concepção, que merece um respeito absoluto. A ideia de que a criança era um ser passivo, moldável, não é verdadeira. O aprofundamento dos direitos das crianças não está ainda suficientemente feito. Falámos muito da falta de consciência dos deveres, mas a meu ver, esta será tanto mais profunda quando mais profunda houver a consciência dos direitos. As crianças devem ser educadas e preparadas para saberem identificar o abuso dos seus direitos, de acordo com o seu grau de maturidade. Era indispensável aprofundar a educação para a afectividade que também envolve a vida sexual e, por outro lado, ter serviços para melhorar as respostas de mediação familiar, como, por exemplo através da educação parental. É necessário que haja na comunidade serviços e instituições que o possam fazer de forma generalizada e as instituições particulares de solidariedade social têm um papel importantíssimo neste aspecto da cultura e da acção. Existem progressos nítidos no pensamento e na acção, mas a grande dificuldade e o grande desafio é a generalização dessa qualidade, colocando-a ao serviço da criança onde quer que ela se encontre.

SOLIDARIEDADE – Outra das ideias que defende é a de que só se deve recorrer à institucionalização da criança em último recurso.
ARMANDO LEANDRO
- Não devemos diabolizar a institucionalização. Ainda não conseguimos, como comunidade, garantir a todas as crianças o direito a uma família capaz de amá-la, logo a institucionalização é ainda necessária, no entanto, deve ser cada vez menor. Um dos grandes perigos é a institucionalização desnecessária e a não desinstitucionalização segura. Apesar do respeito por todas as instituições que têm prestado serviço nesta área, é necessário mudar e há planos nesse sentido, designadamente através da criação de instituições mais pequenas e mais familiares que permitam um tratamento mais individualizado da criança. Também é necessário mais apoio às famílias para que haja a desinstitucionalização tanto quanto possível e a necessidade do apetrechamento técnico das instituições que, muitas vezes, não têm o apetrechamento técnico necessário.

SOLIDARIEDADE – Nota-se, nessa área, alguma diferença considerável entre as instituições do Estado e as instituições particulares?
ARMANDO LEANDRO
- Todas têm problemas, sobretudo com as crianças dos 12 aos 18 anos, onde há grandes dificuldades de comportamento perante as quais as instituições não têm capacidade de responder convenientemente. Aqui, embora o Estado tenha o seu papel de exemplo, a verdade é que o grande capital é o das instituições particulares de solidariedade social.

SOLIDARIEDADE – As comissões de protecção que estão disseminadas pelo país todo são a forma mais adequada de lidar com situações de risco?
ARMANDO LEANDRO
- Na minha perspectiva sim, mas no plano de intervenção que lhes compete. Em primeira instância devem intervir as famílias e as entidades com competência em matéria de infância e de juventude, porque estão mais próximas e podem intervir com menos risco de estigmatização. Só depois é que devem intervir as comissões que são emanações da própria comunidade, que deve assumir a responsabilidade pelas suas crianças e pelos seus jovens. É um sistema que se baseia no localismo e na co-responsabilidade do Estado. A comissão é mais um elemento para que a comunidade tenha uma identidade forte, não autista, o que numa sociedade globalizada é cada vez mais essencial. Hoje o progresso económico depende do capital social, mas não actua sozinho. A rede social, por exemplo, é certamente um parceiro importante. Tem que haver parceria e o grande desafio está na articulação dessas parcerias. A Comissão Nacional está muito interessada nesta problemática e apresentou nos encontros nacionais uma exposição de um investigador universitário nesta área, o Prof. José Ornelas. Vamos tentar fazer um manual de organização de parcerias para articular a acção, numa política integrada ao nível, local, regional e central, que assegure a continuidade do acompanhamento para não haver duplicidade de funções, que vão contra o princípio da intervenção mínima e que afectam o direito à intimidade que as famílias têm e que, por outro lado, representam desperdício de meios.

SOLIDARIEDADE – Estas crianças que morreram às mãos dos pais, cujos processos se perderam nos meandros da burocracia de relacionamento entre comissões, instituições e o direito da família, podem ser vistas como mártires pela causa de uma nova era em que o direito da criança é o mais importante?
ARMANDO LEANDRO
- Eu não gostaria de as ver como mártires, infelizmente existem esses casos que chocam as nossas consciências, sinal de que há a sensibilidade para este problema e podem ser o estímulo a que não se repitam.

SOLIDARIEDADE – Existe ainda um pouco a ideia generalizada no povo português que os pais são os donos dos filhos e que podem inclusivamente educá-los recorrendo à violência…
ARMANDO LEANDRO
- Isto está agora bastante mais ultrapassado, mas não suficientemente ultrapassado. A ideia do poder paternal como uma responsabilidade não está ainda suficientemente generalizada. É uma responsabilidade que não exige reciprocidade, que não olha aos actos isolados, mas sim à pessoa e ao seu desenvolvimento, que não se preocupa só com uma geração mas com todas as gerações, tal como acontece com a humanidade inteira. Esse sentido da responsabilidade parental, que nem se deveria chamar “poder paternal”, mas sim “responsabilidade parental”, como já acontece nalguns países da Europa. No entanto, apesar de chamar-lhe poder paternal a nossa lei está actualizada, pois concebe o poder paternal como um conjunto de deveres atribuídos aos pais na zelação do interesse dos filhos.

SOLIDARIEDADE – Considera que o processo de adopção de crianças que ainda é demasiado complicado?
ARMANDO LEANDRO
- No aspecto legal avançou-se muito. Hoje há instrumentos legais que permitem que as crianças sejam adoptadas muito mais rapidamente. A ideia da responsabilidade parental está muito intensificada. Desde a primeira lei da adopção em que só podiam ser adoptadas crianças sem pais por pais sem filhos já se avançou muito. Outro exemplo, é o do desinteresse dos pais, que antes era preciso que fosse manifestado durante um ano e hoje está apenas nos três meses. Inclusivamente pode ser por razões objectivas, mesmo de saúde mental. Os processos burocráticos e administrativos estão a evoluir positivamente, embora ainda sem a rapidez e a perfeição desejáveis. Há vários problemas. Em primeiro lugar há necessidade de um trabalho precoce e sério com as famílias. E quando as famílias não estão a exercer convenientemente as suas funções tem de haver a protecção rápida, o diagnóstico interdisciplinar adequado e um investimento sério para que, em tempo útil, as famílias possam recuperar a sua função parental. Se fizermos isto bem e depressa, responsabilizando os pais, mas dando-lhes ajuda, estamos mais à vontade para tomar outras medidas quando eles não podem ou não querem ultrapassar a situação. Depois, é necessário aprofundar a cultura da adopção para que ela seja aceite com facilidade na nossa sociedade. Já o é muito mais do que era, mas é indispensável que os casais adoptantes aumentem a sua disponibilidade relativamente às crianças com mais idade, com algumas deficiências, de outras etnias. É óbvio e não podemos criticar os casais que querem crianças pequeninas, com a mesma tez, sem grandes complicações, é humano e natural. O problema que se põe é este: não há crianças suficientes com estas características. Basta pensarmos que das crianças que estão em instituições, dois terços tem mais de 12 anos. Essas crianças só mais dificilmente serão adoptadas, embora não seja impossível a sua adopção e temos que caminhar cada vez mais para a possibilidade de adopções nessas idades.

Texto: V.M. Pinto e Milene Câmara
Fotos. V.M. Pinto

 

 

Data de introdução: 2006-11-09



















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