São sete da noite! Na Rua Mártires da Liberdade, no Porto, o rebuliço de quem sai do emprego e vai para casa é muito grande. Nos passeios íngremes e estreitos cruzam-se pessoas que apenas têm tempo para pedir licença e passar à frente uns dos outros em passos apressados. João, chamemos-lhe assim, alheio a todo este movimento, sobe lentamente a rua até ao número 237. Pacientemente toca à campainha e espera que lhe venham abrir a pesada porta de ferro verde-escura. “Boa noite”, diz-lhe uma funcionária e manda-o entrar. João recebe um kit de higiene pessoal e depois de dar o nome ao funcionário dirige-se à casa de banho.
João tem pouco mais de 40 anos, está desempregado e não chegou a concluir o quarto ano de escolaridade. A Associação de Albergues Nocturnos do Porto (AANP) representa o último refúgio para quem não consegue habituar-se aos rigores de uma caixa de cartão ou de um patamar de entrada de um prédio anónimo. O João representa um conjunto populacional que vive no chamado “submundo”, à margem de tudo e de todos, e para o qual os albergues nocturnos são o único sítio onde é possível tomar um banho quente, comer uma refeição, trocar de roupa e dormir num colchão.
O número de sem-abrigos na cidade do Porto tem vindo a crescer, assim como na generalidade do território, fruto da degradação das situações socio-económicas e do aumento de fenómenos de exclusão social. Ao longo dos tempos os sem-abrigo foram alvo de distintas percepções e designações. Apelidados de mendigos, vadios, vagabundos em diferentes épocas e culturas, os sem-abrigo foram nomeados de forma pejorativa e impregnada de um estigma social marcante.
Miguel Neves, psicólogo, trabalha desde de 2002 na Equipa Técnica de Reinserção Social da Associação dos Albergues Nocturnos do Porto. A equipa é constituída por três psicólogos, duas assistentes sociais e recebe o apoio de uma médica e tem como principal função ajudar estes homens e mulheres a reencontrarem a dignidade humana e retornarem a uma vida considerada normal. “A nossa actividade de reinserção é efectuada de uma forma multidisciplinar, onde todos os técnicos elaboram o diagnóstico do utente para depois realizar um encaminhamento adequado à situação específica de cada um”, explica Miguel Neves. Por altura da comemoração dos 125 anos de existência da associação, a equipa de trabalho lançou um livro, Vidas À Parte, onde traça a perspectiva histórica e técnica da associação.
Nascida a 1 de Dezembro de 1881, por iniciativa de D. Luís I, a instituição particular de solidariedade social (IPSS) é composta por dois albergues, e oferece um total de 136 camas aos sem-abrigo, entre 120 a 130 refeições diárias e dezenas de kits de higiene. Desde Fevereiro de 1998, a associação tem uma Equipa de Reinserção Social, que procura retirar os sem-abrigo da rua, fomentando a retoma de laços familiares, o reingresso no mercado de trabalho ou o encaminhamento para tratamentos específicos. Miguel Neves refere “a não existência de respostas sociais” como um grande obstáculo a esta reinserção e alerta para a “necessidade da sociedade se adequar às características deste grupo populacional”. O problema, diz, “é que as instituições limitam-se a oferecer a vertente assistencialista, sem ajudar a ultrapassar a situação. "E os sem-abrigo vão-se acomodando, apesar da maioria até ter motivação para ser reinserida. O resultado é acabar por não servir de muito dar mais do que a resposta assistencialista a quem procura apoio”, lamenta Miguel Neves.
José Costa Mendes é presidente da associação desde 2002, embora já colabore com os Albergues Nocturnos há mais de trinta anos. O número de sem-abrigo na cidade do Porto ronda, segundo Costa Mendes, “entre mil a dois mil”. “Há mais quatro pessoas por dia a bater à porta”, afirmou o presidente da AANP, lastimando “a falta de espaço e estruturas que se começa a verificar”. A instituição oferece uma média de 120 a 130 refeições por dia e, ultimamente, “o Banco Alimentar tem-se restringido nas ofertas, porque os excedentes comunitários têm emagrecido”. “O ponto negro é o número de albergues que atingiu a capacidade máxima”, nota Costa Mendes, salientando que “se se erguessem mais albergues, ou se as paróquias arranjassem espaço para 20 camas, conseguia-se cobrir todos os sem abrigo”.
A taxa de ocupação é de 100 por cento e apesar dos estatutos definirem que os utentes não devem permanecer mais de três meses a pernoitar na AANP, a realidade é bem distinta. “Na maioria dos casos, três meses são manifestamente insuficientes para construir um projecto de reinserção”, explica Miguel Neves. “Os ritmos de mudança e de crescimento são muito lentos nestas pessoas”, acrescenta o psicólogo. A única situação em que a regra dos três meses é cumprida à risca é no caso das famílias nucleares ou monoparentais acolhidas pela associação, uma valência que não está protocolada com a Segurança Social devido à instabilidade de ocupação. “Só aceitamos famílias encaminhadas por outras instituições e a regra dos três meses é uma forma de responsabilizar essas mesmas instituições para o devido encaminhamento das diferentes situações”, esclarece Miguel Neves.
A pesquisa sobre o fenómeno sem-abrigo aponta para que sejam um grupo distinto e muito heterogéneo de pessoas que partilham da condição de não terem um lar, nem disporem de recursos ou de laços comunitários adequados. Miguel Neves diz que a literatura científica nesta área é muito reduzida e “não há um manual de boas práticas”. “Quem trabalha com esta população, trabalha no fundo do poço e é muito difícil trabalhar assim”, confessa o psicólogo. Miguel Neves diz ser preciso desmistificar a imagem espalhada pela sociedade de que há sem-abrigos que o são por vontade própria. “Ninguém é sem-abrigo por opção! O que acontece, é que há pessoas que cristalizam esse estado porque entram num desânimo muito grande e perdem a esperança de ultrapassar a situação”, afirma o técnico. A partir do momento em que a pessoa passa a encarar a condição de estar sem abrigo para um estado de ser sem-abrigo, a motivação para sair é muito menor. Apesar da grande maioria dos sem-abrigo serem homens e portugueses, também surgem pessoas de outras nacionalidades, principalmente de leste. O tempo de permanência nos albergues é, geralmente, muito menor para os estrangeiros, que conseguem mais rapidamente sair da condição de estar sem abrigo. Miguel Neves aponta o nível de habilitações como um dos principais factores propulsores dessa situação. Para o psicólogo a grande aposta tem que ser feita ao nível dos programas de reinserção que não podem ser aplicados como “pronto-a-vestir”, mas sim como “fatos por medida”. “As análises têm que ser feitas caso a caso e, embora as vulnerabilidades sejam comuns a todos os indivíduos, há um conjunto muito diversificado de macro e micro factores que convergem na mesma pessoa e fazem com que entre nesta situação.
A taxa de sucesso de reinserção no mercado de trabalho e na rede sócio-familiar está na ordem dos 30 por cento, embora “não existam dados sobre as readmissões de ex-utentes, que, infelizmente, são em número considerável”, adverte Miguel Neves.
“O MEU FILHO VAI TER SEMPRE UM TECTO”
Clara da Conceição é um desses casos. Natural de S. Pedro da Cova, concelho de Gondomar, viveu nas ruas cerca de dois anos. “A minha mãe pôs-me na rua juntamente com a minha irmã tinha eu os meus 23 anos”, diz envergonhada. “Nós fomos obrigadas a ir…” acrescenta. Oriunda de uma família com graves problemas sócio-económicos, Clara, agora com 35 anos, relembra com muita dor esses tempos. “Eu nem tirava a ninguém, nem pedia. Tinha muita vergonha. Andava a enganar o estômago com água”, diz. Embora fizesse algumas horas numa empresa de limpeza, não recebia o pagamento e apenas continuava porque “as minhas colegas de trabalho levavam termos com leite e café e davam-me”.
De estatura pequena e franzina pouco demorou para que fosse parar ao hospital, onde esteve internada dois meses. Quando saiu um irmão acolheu-a e assim pôde iniciar um processo de reinserção social. Actualmente é casada e vive com o marido numa casa arrendada, mas nunca mais vai esquecer o tempo em que dormia “por baixo das pontes”, como ela própria diz. “Andava sempre com a minha irmã e dormíamos à vez para ninguém nos fazer mal. Tinha muito medo”, afirma Clara. “O pior foi quando chegou o Inverno e nós ficávamos abraçadas no vão de umas escadas na Serra de S. Pedro para nos aquecermos”, relembra. Trabalha como empregada de limpeza na AANP há sete anos, o que lhe facilitou muito a reinserção.
José Costa Neves, presidente da AANP, diz que ainda tem vários projectos a concretizar. A associação está à espera do desenlace de um enredo burocrático envolvendo a cedência gratuita pelo Estado do edifício do albergue de Campanhã, para poder avançar com «obras profundas» de recuperação e alargamento do imóvel muito degradado, bem como com o projecto de construção de um hospital de retaguarda contíguo. Este hospital irá funcionar como casa-abrigo para 20 a 30 doentes em estado terminal, todos retirados da rua e actualmente hospedados pela Segurança Social em pensões, sem o recomendado acompanhamento médico e de enfermagem. “Nós somos teimosos e, apesar de ser uma obra muito cara, havemos de conseguir”, garante o presidente.
Clara Conceição conta alegremente que soube que está grávida de três meses e acrescenta com um brilho de certeza no olhar “o meu filho vai ter sempre um tecto, mesmo que seja muito pobre”. Perguntámos o que mais lhe custou quando esteve sem abrigo. “Tudo”, exclama e acrescenta “nessa altura até dizia que mais valia morrer do que andar daquela maneira”.
Data de introdução: 2007-01-05