Anda meio país “alevantado” por causa do encerramento de muitos serviços de urgência hospitalar.
A contestação às medidas do Ministério da Saúde tem-se traduzido em manifestações numerosas e concorridas, somando-se à revolta das populações afectadas a solidariedade dos respectivos autarcas.
Eu creio que os manifestantes têm razão na sua indignação e no seu protesto.
Por várias razões:
1 - Em primeiro lugar, dá-se o caso de a maioria das urgências a encerrar se situar no interior do país.
O mesmo é dizer, naquela parte de Portugal – que é, territorialmente, quase ele todo – que nas últimas décadas tem sido votado ao abandono pelos poderes públicos, sejam quais forem os Governos. E que está sem gente.
Curiosamente, é desta escassez de residentes que o Governo retira o fundamento para a decisão de encerrar os serviços – pois se não há gente, não há procura bastante que justifique a existência de um serviço de atendimento permanente.
Já foi este o principal argumento para o encerramento de algumas maternidades periféricas, como a de Elvas, e outras.
Mas este é um argumento viciado, e vicioso – já que se retiram os serviços básicos por não haver gente, e não haverá gente a querer fixar-se em regiões onde não haja os serviços mínimos que confiram segurança e bem-estar.
2 - Depois, porque quando o Governo invoca razões financeiras para a medida – fica caro manter uma equipa de urgência que não tem um número mínimo de solicitações por noite -, as populações percebem que estão a brincar com elas.
Como toda a gente sabe – menos os crentes do partido que em cada momento está no poder, que sempre conferem às medidas, a todas as medidas, do respectivo Governo aquela infalibilidade que nem os católicos atribuem ao Papa, mesmo em matéria de fé -, como toda a gente sabe, dizia eu antes deste largo desvio do texto, as grandes causas do descalabro financeiro da Saúde são outras:
- É a sobremedicação, com os utentes a querer, e os médicos a aceitar, doses industriais de medicamentos, como se a quantidade de pastilhas caucionasse as suas queixas reais ou imaginadas – e que vão para o lixo.
- É o negócio das convenções, acolitado do crescimento induzido de novas necessidades em meios auxiliares de diagnóstico. (Quase não há grávida que não faça uma ecografia por mês, nem dor de cabeça que não mereça um TAC, nem “baixa” médica ou acidente de trabalho que se resolva com menos do que largos meses de fisioterapia).
- São as parcerias público - privadas, com o Estado assumir os riscos e o capital a receber os lucros.
- São as centenas, os milhares, de elementos das equipas das grandes unidades hospitalares das áreas metropolitanas, que não estão presentes nos serviços de urgência mas que beneficiam das respectivas compensações para trabalharem no hospital só da parte da manhã mas terem horário de tempo completo prolongado.
- É o facto de os blocos operatórios desses mesmos hospitais praticamente só funcionarem durante a manhã porque de tarde os médicos – dentro da lei – estão no sector privado.
Neste quadro de desperdício, a manutenção de uma equipa de urgência em cada um dos pequenos hospitais da província, mesmo com pouco movimento de doentes, não custa mais do que uns trocos.
E tudo isto sem falar no valor que tem para a tranquilidade da população saber que, numa aflição, tem na sua cidade ou vila, no Serviço Nacional de Saúde, atendimento médico a qualquer hora de noite – mesmo que nunca precise dela.
(Também preferimos que a Policia não tenha razões para intervir, mas queremos que exista para garantir segurança).
3 – Há ainda uma outra razão para não levar a bem a ofensiva do Ministério da Saúde.
No regime democrático que construímos após o 25 de Abril, o Serviço Nacional de Saúde acabou por adquirir um imenso valor simbólico, já que é praticamente o único grande direito social que mantém a sua amarração constitucional aos valores de Abril.
Numa altura em que os Governos nos vêm alertando para a incerteza do modelo de financiamento e de funcionamento dos sistemas de protecção social no que toca, por exemplo, às pensões, o S.N.S. acabou por se constituir no ultimo reduto e trave mestra da versão portuguesa do chamado “modelo social europeu”, consagrado na Constituição de 1976.
Ora, nos símbolos mexe-se com cautela, e não é qualquer pedreiro que os pode derrubar.
Não caem à marretada, como avisava o Pessoa quanto à demolição das colunas simbólicas dos templos maçónicos, que o legislador da altura – um tal deputado José Cabral, da União Nacional – queria abater, no contexto da lei das associações secretas.
4 – Um último apontamento sobre o tema:
Ontem, na TSF, ouvi que ao encerramento da Urgência do Hospital da Mealhada ia a Santa Casa da Misericórdia local corresponder com a abertura imediata de idêntico serviço.
É sempre assim: quando os outros faltam, e as pessoas precisam, as instituições de solidariedade estão presentes.
E não falham.
*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2007-03-07