Transferências de competências?

1. Para trás, ficaram os tempos em que, politicamente correcta, era aquela linguagem em que Abril aparecia ornamentada pela flor do cravo.
Agora, parece ser aquela linguagem em que a política aparece com a pauta musicada com os grandes desígnios nacionais…
E como “grande desígnio nacional” parece começar a “florir cadenciadamente” a “transferência de competências”, já que o centralismo é um sinal de democracias pouco seguras, de Estados com níveis intermédios ou atrasados de desenvolvimento.
E quando se fala de transferência de competências parece estar subjacente a conclusão de que a fase da construção das infra-estruturas vai estando a pouco e pouco concluída, razão mais do que suficiente para se pensar numa nova geração de políticas locais dirigidas para outros tipos de necessidades, como o sejam a inclusão social, a qualificação e o bem-estar das populações.


2. O Estado, como hoje o conhecemos, com tradução em políticas sociais é um novato. Só nasceu no século XX e aí por volta de 1940, entre os dois conflitos mundiais. Para maior precisão, surgiu na sequência da teoria económica formulada por Keynes e, pouco depois, desenvolvida por Lord Beveridge. É aí que encontramos o que poderíamos designar por nova “Carta Magna” inspiradora do chamado “Estado Providência”.
Este modelo de Estado teve clara expansão nas primeiras três décadas. Porém, a sua contestação começou na década de 70 e a discussão ainda é hoje um facto.
Com efeito, desde os finais da II Guerra Mundial até meados dos anos 70, a maior parte dos países democráticos da Europa experimentou ritmos de crescimento económico sem precedentes. Este crescimento e a melhoria muito rápida dos padrões de bem-estar representavam as duas faces da mesma moeda. É neste contexto e euforia expansionista que, a par das condições a níveis de protecção de saúde, vamos assistir à adopção de esquemas mais favoráveis no que se refere ao acesso e aos quantitativos de pensões de velhice, às prestações de garantia de rendimentos aos desempregados e, ainda, no apoio social a grupos económica e socialmente mais desfavorecidos.

No que concerne ao chamado “Estado Social”, a realidade portuguesa ainda é mais “novata” e, titubeantemente, vai assentando em dois grandes eixos:
Por um lado, parece haver algum consenso em torno dos objectivos nacionais, reconhecendo-se que compete ao Estado a responsabilidade de definição dos parâmetros normativos, dos objectivos estratégicos, da necessidade de gerar consensos nacionais e de se fazer alguma pedagogia no sentido de tentar, tanto quanto possível, evitar que se uniformizem comportamentos na abordagem das questões sociais no combate à pobreza, no combate à exclusão social.

Por outro lado, há uma realidade portuguesa, com assentamento bem antes das discussões sobre o “Estado Social”, pródiga em boas práticas no combate à exclusão social, com resposta individual e colectiva, com um trabalho notável desenvolvido por milhares de voluntários em todo o país.
Essa realidade não pode ser escamoteada e é expressão da vitalidade da chamada sociedade civil, com a sua capacidade de se organizar e de responder, sem ficar à espera do Estado, em que as respostas sociais surgem como fruto de entregas voluntárias a sensibilidades, a capacidades de intuir necessidades e projectar respostas, a sonhos, a propósitos e a ideias, com dádivas de tempo de vida, em que se foram desenvolvendo valores como os da fé, da vontade, da justiça, da verdade, da persistência, da teimosia, assente numa prática desenvolvida ao longo de décadas, com postura perante a vida e perante os problemas e os dramas sociais, solidificando-se e adaptando-se às realidades, às necessidades e às vicissitudes de cada época.


3. Quando se projectam transferências de competências do Estado central para as autarquias, que também são Estado, não se pode esquecer aquelas duas características da realidade portuguesa sob pena de se estar a fomentar uma “concorrência” desleal e inconsequente, abafando a iniciativa de cidadania ou de caridade, ou de se estar a fazer cair num estéril pulular de respostas inconsequentes ou, ainda, de se estar a promover o estrangulamento do sentido da vizinhança e de relações dos cidadãos, verdadeiros artífices da “construção da cidade” enquanto lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas.

Se, como se prevê na Lei nº 159/99, se reconhece às autarquias locais competências na gestão de equipamentos e na realização de investimentos na construção ou no apoio à construção de creches, jardins de infância, lares ou centros de dia para idosos e apoio aos cidadãos deficientes, isso deve acontecer, legitimamente e só, quando não há respostas de iniciativa dos cidadãos que, mobilizados, assumem participar na melhor sorte dos seus concidadãos.
Porque o grande desafio das autarquias, a nível local, será mobilizar os cidadãos, valorizar o voluntariado e a ideia da responsabilidade social das organizações da sociedade civil, criar ambientes propícios à cooperação entre agentes locais, coordenar esforços e competências e… suprir…

Essas serão as grandes competências do Estado local, cujo rosto são as autarquias…

* Presidente da CNIS

 

Data de introdução: 2007-04-02



















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