CÍRCULO DE APOIO À INTEGRAÇÃO DOS SEM-ABRIGO

Eu não trabalho na CAIS, a CAIS tem tido trabalho comigo

“Compre a revista CAIS! A revista dos sem-abrigo!”
Era este o pregão que se ouvia na rua de Santa Catarina, onde desfilava um turbilhão de gente atarefada que admirava as montras e que, de lés a lés, uma ou outra pessoa lá entregava os dois euros à vendedora. Devidamente equipados e identificados, os vendedores CAIS palmilham a cidade para vender as trezentas revistas que lhes são destinadas mensalmente. Ganham setenta por cento do preço de capa (dois euros) e se venderem todos os exemplares conseguem arrecadar quatrocentos e vinte euros mensais, “uma boa política de inserção para quem pretende mudar de vida”, explica Sílvia Azevedo, responsável pelo Centro Cais do Porto.

A revista CAIS assinalou o arranque da actividade da própria associação, em 1994. A CAIS apresenta como grande missão contribuir para o melhoramento global das condições de vida de pessoas sem casa/lar, social e economicamente vulneráveis, em situações de privação, exclusão e risco. Inspirada na revista inglesa “The Big Issue”, a publicação tem-se revelado a face visível de um trabalho que vai muito para além da revista. Com uma forte componente fotográfica, a publicação mensal privilegia as temáticas sociais, culturais e científicas e é distribuída por instituições de cariz social em todo o país, que seleccionam entre os seus utentes, os vendedores CAIS.

Com alguns problemas de percurso, a selecção dos vendedores tem-se tornado cada vez mais rigorosa para que cumpra o objectivo a que se destina: ajudar a reintegrar os excluídos da sociedade. A venda da revista deve ser transitória e destina-se a quem não tem outro tipo de subsistência, nomeadamente o Rendimento de Inserção Social, o que nem sempre se tem verificado. No início deste ano, em Janeiro, Henrique Pinto, director da CAIS, admitiu que, em alguns casos, a distribuição da revista havia-se tornado num emprego com mais de cinco anos de actividade, situação justificada pelo pouco acompanhamento e fiscalização dos vendedores devido à falta de técnicos.

Desde o início de 2007 já têm surtido efeito as alterações introduzidas pela associação, tendo-se verificado uma redução efectiva de distribuidores. Em declarações ao Diário de Notícias de vinte e dois de Janeiro, Henrique Pinto explicou que "o projecto foi pensado para servir de apoio económico a quem não tinha qualquer tipo de apoio, a quem bateu no fundo. Queremos que as pessoas que passam por aqui sejam de facto ajudadas. É preciso que se capacitem em encontrar soluções estáveis. Este não é um projecto de vida", disse. O custo da capa da revista é de dois euros, setenta por cento dos quais reverte para o vendedor, quinze por cento para os centros de distribuição e os restantes quinze por cento para a Associação CAIS.

Vender a revista….

“Eu não trabalho na CAIS, a CAIS é que tem tido trabalho comigo”, diz entre sorrisos ao Solidariedade Adelino Vicente, um dos quatro vendedores integrados no Centro CAIS do Porto. Com quarenta e seis anos, Adelino tem um passado marcado pela exclusão social. Ex-recluso e toxicodependente é vendedor da revista há cerca de um ano, tendo conhecido a associação através de uma assistente social do Instituto de Reinserção Social. “A CAIS foi uma coincidência e depois fiquei…”, diz Adelino, explicando que se identifica com a publicação, porque “fala dos preconceitos, da prostituição, dos sem-abrigo”.

O processo de admissão de um vendedor começa com uma avaliação psicossocial, onde se tentam “apurar as necessidades da pessoa e a que níveis é possível trabalhá-las”, afirma Sílvia Azevedo, responsável pelo Centro Cais do Porto. Cada utente pode permanecer três meses na instituição sem frequentar qualquer actividade. “Vêm, estão, conversam, criam amizades e principalmente ganham confiança”, explica a técnica de Educação Social. Ao fim desses três meses, quem quiser continuar a frequentar o centro, tem que participar, pelo menos, numa das actividades oferecidas (ioga, cursos de informática, terapia educacional, etc.), pois assim os técnicos conseguem trabalhar os horários, a responsabilidade, a motivação, sempre num plano individual. “Tivemos pessoas que vieram para cá, tiraram um curso de informática, ou que vieram aprender português e que manifestam interesse, por exemplo, em tirar um curso de culinária, de carpintaria, fazer um curso profissional de equivalência ao nono ano de escolaridade e nós encaminhamos para as estruturas indicadas”, explica Sílvia Azevedo e realça que, normalmente, o vínculo dessa pessoa com a CAIS é mantido, mesmo quando conseguem inserir-se no mercado de trabalho, porque, explica a técnica, “de hoje para amanhã podem perder o emprego e assim sabem sempre que podem recorrer aqui”.

Aos candidatos a vendedores são exigidos comprovativos de inscrição num centro de emprego, para que possam ser chamados a qualquer momento para trabalhar, assim como fazer prova de que não usufruem de nenhum outros subsídio de apoio da Segurança Social. “Há pessoas que nos procuram e que não têm necessidade de vender a revista, e que, sem qualquer estímulo para trabalhar, acham que é mais fácil optar por isto”, confirma Sílvia Azevedo. “Não podemos permitir que uma pessoa venda revistas para pagar consumos ou vícios ou, simplesmente, porque é mais cómodo do que trabalhar”, reitera a técnica.
Segundo a responsável pelo Centro Cais do Porto, cada um vende, em média, cerca de 250 revistas por mês. Dos 320 utentes que frequentam a Cais no Porto, apenas quatro é que se tornaram vendedores. Adelino admite que não é fácil vender a revista, por isso adoptou uma estratégia própria. “Eu não vendo na rua porque as pessoas estão nos seus afazeres, têm sempre pressa e olham para mim sempre com aquela imagem de sem-abrigo”, explica. “Desde que o mundo é a minha família, que não tenho sítio específico para vender”, diz o vendedor. Adelino estabeleceu uma rede de contactos mais ou menos fixos a quem vende mensalmente a publicação. “Tenho um senhor na Foz, que é reformado, que me compra sempre a revista e é o meu conselheiro”, afirma com convicção. “Há coisa de dois meses que não vou lá, mas quando lá vou volto mais leve”, diz Adelino. “Tenho uma senhora de idade em Gaia, que está sozinha com um filho acamado de quarenta e sete anos e eu, quando lá vou, estou lá às meias-horas a falar com ela e até esqueço-me que tenho as revistas nas mãos para vender”, exemplifica o vendedor.

O período permitido para a venda da revista é de um ano, podendo ser prolongado por mais um, período em que é preparado o projecto de reinserção da pessoa. “Além da formação em várias áreas, temos um Gabinete de Apoio ao Emprego, que ajuda os utentes a elaborar currículos, procurar anúncios, fazer candidaturas espontâneas e que tem como grande objectivo servir de apoio na procura activa de emprego”, explica a responsável pelo Centro do Porto. Além disso a própria instituição de solidariedade social é parceira do Programa Vida-Emprego, promovido pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional e que tem como objectivo a inserção na vida activa de toxicodependentes em recuperação ou recuperados, através de uma formação prática em contexto real de trabalho. “São pessoas que têm um conjunto de problemáticas que requerem uma compreensão especial. Aquilo que procuramos fazer noutras entidades, também promovemos cá dentro”, explica a técnica.

Uma mão cheia de projectos

Sílvia AzevedoA associação CAIS dinamiza um conjunto vasto de iniciativas ao longo do ano que concorrem para a promoção e visibilidade da causa para a qual trabalha diariamente. Desde 2002 que a associação dedica o mês de Março ao debate e à reflexão das questões sociais, tendo este ano dedicado o sexto Congresso CAIS ao tema “Empowerment, capacitar para participar”. O “Futebol de Rua” é outra das actividades que reúne muitos adeptos. A CAIS é responsável pela preparação da selecção portuguesa para o Homeless Worl Cup, organizado pelo International Network of Streetpapers. Este ano o “Campeonato Nacional de Futebol de Rua” vai reunir onze distritos participantes de norte a sul do país. Para além destes eventos, a instituição promove anualmente um concurso de fotografia e premeia pessoas ou entidades que se tenham distinguido na área social, com o prémio “Manus CAIS”. Também possui um departamento de estudos e publicações político-sociais, onde reflecte em conjunto com outras instituições e, mais recentemente, com uma equipa da Comissão Parlamentar para os Assuntos Sociais, as políticas sociais em vigor, descreve a dimensão dos fenómenos e sugere formas de resolução.

Devido às crescentes necessidades de apoio, foram criados em 2003 e 2005, respectivamente, o Centro CAIS de Lisboa e o Centro CAIS do Porto. As duas estruturas são centros comunitários, polivalentes, cuja prioridade é educar para uma vida autónoma, promovendo a cidadania através de diversas actividades e estratégias de intervenção social, com oficinas de informática, ensino básico, artes plásticas, teatro, pintura, etc.
O Centro Cais do Porto funciona desde Outubro de 2005 em instalações cedidas por comodato pela Santa Casa da Misericórdia do Porto e ainda não tem protocolo com a Segurança Social. “Estamos a trabalhar na candidatura a um acordo, mas ainda não existem dados concretos.

No ano passado pedimos apoio para este ano, mas o orçamento já estava todo distribuído e o nosso projecto ficou à espera”, adianta Sílvia Azevedo. Um dos objectivos do projecto que espera aprovação é a construção de uma galeria/espaço cultural que irá servir refeições diárias ligeiras. “Será um espaço aberto à comunidade, o que irá ajudar à sustentabilidade dos nossos projectos e permitir que os nossos utentes possam fazer refeições a um custo social”, explica Sílvia Azevedo. A responsável pela unidade portuense fala das dificuldades em manter o centro, que actualmente funciona com apoios de empresas privadas e com a ajuda da “casa-mãe”, a CAIS de Lisboa.
“Compre a revista Cais! A revista dos sem-abrigo!”
Apesar do pregão mais típico ser este, há quem se recuse a continuar o estereótipo. “Eu não promovo a minha necessidade, quando as pessoas se interessam, eu explico quem sou e o que faço”, afirma convicto Adelino Vicente, para quem a revista é um “meio altruísta de aumentar a auto-estima e de fazer com as pessoas se cruzem com a sociedade e dialoguem com ela”.

 

Data de introdução: 2007-06-13



















editorial

VIVÊNCIAS DA SEXUALIDADE, AFETOS E RELAÇÕES DE INTIMIDADE (O caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS)

Como todas as outras, a pessoa com deficiência deve poder aceder, querendo, a uma expressão e vivência da sexualidade que contribua para a sua saúde física e psicológica e para o seu sentido de realização pessoal. A CNIS...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Que as IPSS celebrem a sério o Natal
Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente
Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a...