Sete anos de pastor

1 – Na Carta - Prefácio das suas “Cartas ao Papa”, D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, evocava palavras do próprio Papa João Paulo II, delas destinatário, sobre a velhice, proferidas na Catedral de Munique, em Novembro de 1980, nestes termos: “A velhice é o coroamento dos estádios da vida. Ela reúne tudo o que se aprendeu e foi vivido, quanto se fez e foi alcançado, o que se sofreu e foi suportado. Como, no final de uma grande sinfonia, retornam os temas dominantes da vida para uma poderosa síntese sonora. E esta ressonância conclusiva confere sabedoria, bondade, paciência, compreensão e esse precioso coroamento da velhice – o amor”.

Nessa Carta, como nas demais – escritas em Ermesinde, esta terra que é também a minha, e onde redijo estas crónicas, onde o célebre Bispo do Porto viveu após ter resignado do governo da Diocese, e onde veio a morrer – D. António Ferreira Gomes falava também de si e do que em si sentia dessas sínteses dos temas dominantes da vida.

Mas falava ainda de todos os homens e mulheres que fazem da sua vida um exemplo e que, ao cabo dela, olham para trás sem vergonha e com a sabedoria que só o tempo traz consigo.


2 – Habituados à euforia do momento e a viver com intensidade cada instante que passa, como que adormecemos em nós a capacidade de ver, e venerar, a coerência de tantas vidas longas e inteiras, de esforço, de trabalho e de exemplo - como são as vidas de tanta gente que vive connosco e ao nosso lado.

A vida é, na verdade, um percurso, em que cada momento já estava contido no momento passado e se projecta no momento futuro - e não uma soma avulsa de dias ou de anos.

É um pouco esta noção de a vida ser um percurso, uma totalidade, que tem servido de matriz – ou de pretexto – para algumas novas politicas públicas, que assentam justamente nesta ideia de um continuum.

Uma dessas politicas, que se funda no decurso do tempo e na carreira, é, por exemplo, a das pensões de reforma, hoje objecto de profundo e aceso debate.

Há quem entenda – é a visão tradicional à esquerda – que a pensão de reforma é um mecanismo de protecção social destinado a quem abandonou a vida profissional activa. E que, nesse sentido, deve permitir ao reformado manter o tipo de vida que mantinha enquanto no activo, não provocando, ao fim de uma vida de trabalho, a diminuição da qualidade de vida.

Nessa perspectiva, a pensão deveria ser calculada em função dos rendimentos percebidos à data da reforma - desde que cumpridos os requisitos de tempo de descontos e de idade, evidentemente.

No outro lado – da perspectiva tradicionalmente mais conservadora, ou liberal – a reforma é uma espécie de contrato de seguro, em que o critério para a determinação da pensão tem como eixo dominante, não o vencimento à data da reforma, mas o montante das contribuições pagas durante a vida activa.

Neste entendimento, recebe-se de acordo com o que se descontou, levando em linha de conta para a formação da pensão toda a chamada carreira contributiva.

É certo que se encontra hoje muito esbatida, também nesta matéria, a fronteira entre o que é de esquerda e o que é de direita.

A crise demográfica, o envelhecimento da população, a consequente crise de financiamento dos sistemas de segurança social, em toda a parte têm conduzido a medidas que se traduzem, em termos práticos, no enfraquecimento do nível da protecção social.

No nosso país, por exemplo, e como se sabe, a Segurança Social abandonou o sistema de cálculo da pensão de reforma com base nos melhores dez anos dos últimos quinze – mais próximo do entendimento da reforma como substituto do salário -, para passar a ter em conta toda a carreira contributiva, assim reforçando a natureza contratual, ou sinalagmática, da pensão.

Mas, considere-se de direita ou de esquerda a medida, ou apenas fundada no estado de necessidade, e concorde-se ou não com ela, o certo é que não se lhe pode negar uma certa coerência intrínseca.

É que, na verdade, ela respeita a natureza da carreira como um todo, como um percurso, do instante inicial – o primeiro emprego – ao derradeiro – o momento da reforma.

É uma espécie de síntese conclusiva da vida profissional.

3 – Ora, a coerência que não custa desvendar nesta medida de política é justamente o que se não vislumbra numa outra que tem ocupado o espaço do debate público com grande e justificada intensidade nas últimas semanas – o concurso para professores titulares, no âmbito do Ministério da Educação.

Não se trata nesta crónica de saber se todos os professores do ensino público devem aceder ao topo da carreira, ou se todos podem ser professores titulares, topos para que o Ministério procura conduzir o debate.

A questão é outra.

Os jornais têm trazido diariamente o registo de situações e de efeitos desse nefasto concurso que justificam a mais fundada revolta.

Trata-se de professores em fim de carreira – cá voltamos à palavra -, do 10º e último escalão, que durante 40 e mais anos ensinaram de forma competente e dedicada, com uma assiduidade sem mácula e um desempenho de mérito – e que não atingem a pontuação que o Ministério definiu na grelha por si desenhada como requisito de acesso a esse novo último degrau na carreira, o de professor titular.

A esses, os professores que dão aulas, o Ministério privilegia – creio que se pode chamar assim, embora o ataque aos privilégios, reais ou imaginários, seja uma griffe soi-disante deste Governo – os professores que desempenham cargos de direcção das escolas.

Mesmo que se entenda – e entende-se – a relevância de funções de gestão, na carreira docente, que é como a lei lhe chama, a gestão não pode ser privilegiada – Deus me perdoe por usar a palavra proibida – em relação ao ensino propriamente dito.

Que é o que sucede.

Mas nem sequer é só isso.

Mesmo que aqueles professores de mais antiga carreira, de que falava acima, tivessem desempenhado as funções agora privilegiadas de direcção, tivessem desempenhado todo o que havia a desempenhar ao longo do seu percurso profissional, do seu curriculum, se tal ocorreu há mais de 7 anos, já não valem.

Só valem para quem manda agora nas escolas – de há 7 anos para cá.

Estes, os mais jovens lideres, passam a titulares, ultrapassando professores mais antigos, com tanta ou mais experiência e com pelo menos igual dedicação, assiduidade e competência.

Como os iuppies do auge do cavaquismo.

4 – Uma lei que permite estes efeitos é uma lei iníqua e imoral – e tem que ser revogada, como os sindicatos, desta vez com razão, e o bom senso, que tem sempre razão, exigem.

Tratar uma vida profissional longa e esforçada – um percurso, para voltar à semântica inicial da crónica – deitando-a quase toda para o rol das inutilidades, salvando cirurgicamente os últimos 7 anos, quando o que justamente está em causa é a carreira, toda a carreira, e a progressão nela, é não ter respeito pelas pessoas e pelo seu trabalho.

Privilegiar, em matéria de carreira, os mais novos, apenas porque são quem exerce o poder nas escolas - e o apoio dessa nomenklatura é útil em tempo de conflito entre o Ministério e os professores – não é legítimo.

Indo ao arrepio do que são os pressupostos de outras políticas públicas também assentes em carreiras.

Dando sinais contraditórios do Governo em questões que são centrais na governação.

5 – E 7 anos porquê?

Porque também só depois dos últimos 7 anos é que Labão deu a Jacob Raquel, que era quem ele queria, de nada tendo servido os primeiros 7 anos da carreira em que a seu amo servira – e que só davam direito a Lia?

Ou pela força esotérica do número 7, da magia, da manilha, dos pecados e da queste ?

Creio que a razão deva ser a segunda.

Já nem se dá o Camões nas escolas.


*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2007-07-06



















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