SOLIDARIEDADE – É curioso… Foi o único presidente da União - agora CNIS - que não é padre?
ERNESTO CAMPOS - (Risos) É uma curiosidade, na medida em que saiu da habitualidade, simplesmente por isso. Eu estava sintonizado com o ideário das instituições particulares de solidariedade social, com o facto de muitas delas serem instituições da igreja católica. A instituição a que eu pertencia estava num plano completamente à parte e, se calhar, foi por esse âmbito que me procuraram, par dar uma certa laicidade à União.
Fazia-se, nesse tempo, uma associação entre a União e a Igreja?
Fazia-se e podia ser mal interpretada. Poderia ser mal interpretada no sentido de querer que a Igreja tivesse uma hegemonia sobre todas as instituições, o que não era o caso. Praticamente todas as instituições da Igreja aderiram à União, mas também havia muitas que eram completamente laicas e que aderiram.
Esteve apenas três anos à frente dos destinos da União. De 1984 a 1987. Foi opção?
Foi mais ou menos opção, porque eu tinha outras tarefas e a presidência da União era muito absorvente.
Mas quando aceitou a candidatura não tinha percebido a dimensão da União?
Não tinha percebido, sobretudo o stress que iria trazer. Todavia, no fim desse mandato, ainda houve uma certa movimentação para que a direcção continuasse e eu cheguei, a princípio, a anuir, embora tivesse posto algumas condições. Isso não fez vencimento e eu saí, sem prejuízo de ter colaborado uma ou outra vez com a direcção posterior, com toda a simplicidade. Não fiquei zangado. Foi por inteiro consenso que se estabeleceu que haveria outra direcção para conduzir os destinos da União.
Que ganhou também só com uma lista concorrente?
Julgo que sim, embora houvesse um rumor de uma segunda lista da qual eu próprio faria parte. Não fazia parte e estava, de certo modo, cansado porque aquilo tinha criado situações de stress desagradáveis e com esse stress eu não contava inicialmente.
A União não era considerada como parceiro social, não tinha grande visibilidade, era difícil, no fundo, assumir o papel de presidente do movimento em crescimento…
Sim. Não tinha grande visibilidade social e esse foi outro aspecto que se procurou desenvolver, quer com a criação do jornal Solidariedade, quer com entrevistas aqui e ali em alguns jornais, de modo a criar a visibilidade e a projecção que não existia. Mas entendia-se que a força reivindicativa que poderia ter diante da administração pública e do governo viria, justamente, de uma maior visibilidade. Demos alguns passos nesse sentido.
Designadamente, a criação do jornal…
Exacto, foi uma opção. Tínhamos um colaborador que episodicamente passava por lá e que tentava conseguir algumas entrevistas, a um título voluntário. Era o José dos Anjos Pereira, falecido já. Estava ligado às artes gráficas e, portanto, tinha alguns contactos e umas certas relações nesse sector. O trabalho era feito numa base benévola e por isso também com uma certa limitação. Aliás, não tinha o formato de jornal, mas sim de revista, com 36 a 40 páginas. O nome advinha de, na altura, na Polónia, se falar muito no nome do sindicato Solidariedade. Também estava expresso na designação das instituições de solidariedade social e uma coisa e outra…
Para além do jornal lembra-se de alguma outra iniciativa que tivesse como objectivo a projecção da União para o exterior?
Nós procurávamos fazer, não apenas assembleias-gerais, mas reuniões frequentes regionalmente e até a nível nacional, como jornadas, que organizávamos periodicamente. E procurávamos fazer a publicidade que fosse possível.
Lembra-se em que contexto é que foi chamado a assumir a liderança da então União das Instituições Particulares de Solidariedade Social?
O contexto era de continuidade do trabalho desenvolvido pela direcção anterior que tinha iniciado uma nova fase da União das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Eu acentuo e sublinho este “Particulares” porque havia na altura uma tendência para falar em Instituições Privadas de Solidariedade Social e nós tínhamos a preocupação de corrigir. Não se trata de privadas, trata-se de particulares.
Foi a continuidade do esforço de organização e de edificação da direcção anterior liderada pelo padre Orlando. Tendo-se proposto o meu nome, porque eu estava ligado também a uma instituição, Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM), foi sujeito a votação, evidentemente. Não havia lista concorrente e não foi propriamente preciso fazer uma campanha no sentido de garantir a eleição. O que acontece é que de facto a União estava a ser edificada, com uma organização ainda incipiente e um pouco rudimentar, mas que tinha lançado as suas bases e a que era preciso dar continuidade.
Quais eram os problemas mais candentes?
A continuidade consistiu em retomar todo o passado recente na sua integralidade e avançar com algumas iniciativas. Uma delas foi o ultimar de uma portaria regulamentadora em relação ao trabalho dos funcionários das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Isso vinha já da direcção anterior, mas faltava ultimar uns pormenores quanto a tabelas salariais e coisas desse tipo. Acontece, todavia, que numa das primeiras reuniões que tivemos com a Secretária de Estado, que na altura era Dr.ª Leonor Beleza, abordou-se esse pormenor que ficou pendente em relação ao texto que haveria de ser publicado, para definir o texto final. Então deu-se um caso curiosíssimo: A Secretária de Estado pediu o texto sobre o qual tínhamos trabalhado, para ser ultimado e para mandar para publicação, e o que lhe apresentaram foi o texto já publicado no Boletim de Trabalho e Emprego. O que prova que, por vezes, o poder político é ultrapassado pela própria administração pública. A senhora ficou muito surpreendida com aquilo, pediu desculpa, mas estava definido o texto e assim ficou e vigorou durante uns anos ainda, até que foi substituído por um Contrato Colectivo de Trabalho, o que envolveu também algumas dificuldades, em algumas frentes, com o Estado, por um lado, com os sindicatos, por outro. Era preciso salvaguardar a especificidade da relação laboral do pessoal das IPSS. Aí havia alguma resistência por parte dos sindicatos que entendiam que eram funcionários como todos os outros. A nossa filosofia é outra que não a das empresas. Nas IPSS não há um conflito de interesses, à partida.
Como assim?
Há uma convergência de propósitos: praticar o bem, a favor dos utentes, aqueles que carecem efectivamente da nossa solidariedade. Era uma filosofia que até os próprios governantes não entendiam. Um funcionário superior de um ministério disse-me uma vez: “eles não entendem a vossa linguagem”. Era daqui que advinham algumas dificuldades. Foi preciso no contacto, creio eu, com 3 ou 4 Secretários de Estado, entre 1984 e 1987, foi preciso catequizar toda essa gente. Foi preciso fazer passar a mensagem e transmitir-lhes a nossa filosofia, essa forma de estar ao serviço da sociedade, este espírito benévolo da solidariedade. Os sujeitos não entendiam que as pessoas se empenhem causas com as quais não ganhem alguma coisa. Não entendiam que fosse possível este voluntariado, esta disponibilidade para servir os outros.
A relação com o poder sempre foi algo tensa, problemática e, por vezes, de diálogo difícil…
Sim, sem dúvida. Não se pode dizer que tenha sido tempestuosa, mas às vezes de diálogo difícil. Em alguns casos porque havia um certo preconceito, uma pedra no sapato da administração pública em relação à actividade das instituições. Um preconceito que se traduzia também nisto: propostas que se fizessem caíam no cesto dos papéis e, às vezes, eram recuperadas como sendo da iniciativa da própria a administração pública. Aquilo que era iniciativa da administração pública avançava, aquilo que era iniciativa expressa das instituições ficava sempre um pouco de lado. Entendia a administração pública que tinha obrigação de fazer aquilo que as instituições pretendiam fazer.
Acha que o facto das IPSS existirem também constituía prova de que o Estado não cumpria as suas obrigações ao nível da solidariedade…
Acho que as IPSS podem ser vistas como a prova da inoperância do Estado, mas em princípio o Estado não deve ser operante nesse sentido. O que deve ser operante é a sociedade civil e o Estado vem depois. Ao Estado é que cumpre preencher as lacunas que a sociedade civil não pode fazer, porque não tem recursos para o efeito. O Estado tem os impostos que há-de devolver à sociedade civil para que ela edifique esta necessidade de solidariedade entre as pessoas.
Depois de ter saído e de ficar desligado institucionalmente da União, foi acompanhando o seu crescimento?
Fui acompanhando e tomando conhecimento que houve essa viragem de União para Confederação, resultante do facto das instituições se terem multiplicado e serem, às vezes, muito heterogéneas. Uma coisa são instituições que atendem deficientes, outra coisa são instituições que atendem idosos, crianças, doentes terminais, etc. Ora bem, esta especificidade põe problemas muito próprios que têm que ser tratados no seu próprio âmbito e que, por conseguinte, justificam diversas uniões que se vão depois aglutinar numa confederação, deixando inteira liberdade a cada um desses sectores.
Acha que neste momento a CNIS já tem a visibilidade e a representatividade que se impõe?
Não sei se atingiu o patamar desejável, suponho que estão ainda a fazer a sua caminhada, num plano mais avançado do que eu estava, mas estas coisas fazem-se ao caminhar. O facto de se ter transformado numa Confederação, se calhar, foi um grande passo no sentido de abrir esse caminho. Em termos de visibilidade social, de presença na imprensa suponho que ainda há muito a conquistar. Perante a administração pública, perante o Estado e o poder político, se calhar, também, na medida em que neste momento as dificuldades serão talvez maiores. Há uma tentativa de criar uma certa pressão para que as IPSS não se possam desenvolver e que tenham que ser submissas em relação ao poder central. São aspectos prepotentes, como essa história dos ATL, entre outras...
Tem acompanhado a questão do ATL? O Estado desconsiderou as IPSS?
Há uma certa desconsideração, mas para além de desconsideração é um erro de base porque devem ser as instituições a continuar com esse trabalho. Prolongamento do horário escolar? Com que recursos humanos, com que material? As IPSS têm isso e o Estado só tem é que subsidiar as IPSS para garantir a continuidade desse trabalho. Quando o Ministério da Educação diz que quer a escola pública a tempo inteiro, eu não quero a escola pública a tempo inteiro. A tempo inteiro a criança deve estar entregue à família e só complementarmente, durante algum período, é que deve estar entregue ao Estado, à escola. É um mau serviço, não só desconsiderando as IPSS, mas partindo de um princípio erróneo e com prejuízo para as crianças.
V.M.Pinto – entrevista e fotos
Não há inqueritos válidos.