A DITA RÓI, A DITA MÓI, A DITA DURA

1 - Há cerca de 30 anos, tive uma doença grave do aparelho circulatório arterial, com risco de amputação parcial dos membros inferiores.
Corri vários especialistas, fui duas vezes a Londres – então, como agora, lugar de mais segura competência médica do que Portugal -, tendo havido acordo no diagnóstico quanto à definição do mal e da respectiva causa: o tabaco, agente desencadeador da afecção.
E também da terapêutica: para além de medicamentos e dieta, a necessidade absoluta de deixar de fumar.
Fumava então cerca de dois maços de tabaco por dia. E faz 30 anos em 19 de Março do próximo ano - o Dia do Pai – que deixei de fumar.
Nestes 30 anos, sempre que pude, nunca deixei de começar o dia a ler o jornal, num café – lugar ritual de fumo.

Frequento restaurantes com intensidade. Com gente a fumar à minha mesa, ou à volta.
Gosto de tertúlias, e de conversas que se prolongam pela noite dentro. E não há verdadeiramente tertúlias que não terminem com a sala cheia do ar translúcido do fumo.
Mesmo em casa, convivo diariamente com os aromas do tabaco.
Sou, portanto, como se diz agora, um fumador passivo.
No entanto, e não obstante saber de ciência certa que, se voltasse a fumar, voltaria a infecção, o certo é que o fumo passivo nestes 30 anos me não fez mal nenhum.
O Governo justifica a sua obstinação regulamentar da proibição e perseguição prática dos fumadores com a protecção dos fumadores passivos.
Com a minha protecção, portanto.
E há, como há sempre para todos os gostos e feitios, pareceres científicos que vêm em socorro das pretensões do Governo.
(Os Governos, e em geral quem manda, têm aliás mais artes do que os governados para conseguir pareceres ajustados aos seus objectivos. A este propósito, costumo recordar um consultor jurídico de uma autarquia, que, quando se lhe pedia um parecer da sua especialidade, começava por perguntar: “Em que sentido quer o parecer, senhor Presidente?”)
Não sei se foi o método empírico o seguido pelos peritos para as conclusões proibicionistas. Mas aqui me ofereço para os testes sobre os efeitos do fumo nos não-fumadores.

2 – Tenho um sobrinho, engenheiro, a trabalhar no CERN, na Suiça.
Os pais, que o visitam com frequência, dizem-me que em Genève já se vêem outdoors com mensagens sobre o consumo de açúcar em excesso, antecipando o que se pressente serem próximos regulamentos eugénicos sobre os alimentos autorizados.
Também cá não hão-de tardar.

3 - A minha filha, licenciada em Direito, inscreveu-se num curso de Mestrado numa universidade pública.
No acto de inscrição, exigiram-lhe o preenchimento de um inquérito – e dizem-me que o mesmo sucede em todas as inscrições para níveis de formação no ensino superior público, por exigência do Ministério da Ciência e do Ensino Superior -, em que os alunos têm que dar explicações ao Estado sobre, entre outros edificantes assuntos, se são casados ou vivem em união de facto, quantas pessoas – e qual o seu estatuto -constituem o agregado familiar, qual o nível social e económico do aluno, da mãe, do pai e do cônjuge e qual o respectivo nível de escolaridade, quais são os níveis de rendimentos desse agregado, quem paga os estudos, qual o regime de habitação, como se desloca o aluno para a escola, onde toma as refeições.
Não percebo a pertinência dessas informações para melhorar a competência dos professores ou a qualidade do ensino.

Mas já percebo – e preferia não perceber – o interesse que pode ter o Estado em ter mais uma base de dados para cruzar com as outras que já tem e poder assim vigiar-nos melhor.
Além do mais, esse inquérito já obedece ao choque tecnológico. E, se um aluno se recusa a responder a alguns items – ou “aitems”, inglesando a fonética latina, como fez na Assembleia da República o nosso Primeiro-Ministro -, nomeadamente aqueles que violam a reserva e intimidade da vida privada, a tramitação informática, via Internet, por onde exclusivamente se processa o inquérito, bloqueia e não permite avançar para a questão seguinte.
É preciso responder a tudo, e pela ordem estabelecida, com o respeito e reverência devida às autoridades. Para que os doutores se habituem desde cedo à obediência e ao dogma e não sejam contaminados pelo vírus do livre arbítrio, como tão bem caricaturou o Eça no “Conde de Abranhos”.

4 – Ainda a propósito do choque tecnológico, o mesmo figurino do inquérito que se preenche nas universidades do Estado foi igualmente instituído pelo Ministério da Educação no concurso que tanta polémica tem causado – e com várias ilegalidades já denunciadas pelo Provedor de Justiça – para professor titular.
Também só pela Internet se pode concorrer, também aí só era possível passar a um item depois de responder ao anterior, nunca se podendo pôr em causa nas respostas os dados constantes dos ficheiros do Ministério, mesmo que errados ou ilegais.
É também ao choque tecnológico que devemos o duvidoso progresso de o Ministério das Finanças agora poder fazer penhoras de imóveis em directo, sem decisão prévia de um juiz, conferindo ao Estado, mesmo nos casos de dívida real, um privilégio relativamente aos restantes credores que é uma verdadeira ofensa ao Estado de Direito.

5 – Creio aliás que se vai instalando nos círculos do poder uma certa ideia perversa de que a maioria absoluta permite o poder absoluto, pretendendo-se que as leis que vão sendo feitas valessem como se se tratasse de uma espécie de leis inaugurais, da construção do mundo.
Como se não houvesse Constituição a respeitar.
(Ainda há dias veio o Procurador Geral da República explicar que qualquer aluno do 1º ano de Direito daria conta sem esforço de notórias inconstitucionalidades de uma lei desta Maioria, como aliás o Tribunal Constitucional veio confirmar. Mas a pedra cai no charco … E não faz ondas…)

6 – Este conjunto disperso mas coerente de apontamentos é apenas uma forma de dizer que estará muito bem o progresso tecnológico, desde que não nos toquem na liberdade.
Já estão a tocar, como quem não quer a coisa, e a reboque do progresso e da modernidade.
Ora sucede que a culpa não é da modernidade. Mas sim de quem a usa como pretexto para vasculhar em cada momento a nossa vida para melhor a comandar.
Com eficiência e eficácia, como não há discurso modernaço que não diga.
De sorte que estou cada vez mais com o anarquista espanhol: “Hay Gobierno? Soy contra!”

* Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2008-01-06



















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