Nos mais de mil títulos recolhidos e estudados atribuídos a Nossa Senhora em Portugal e nas ilhas, Madeira e Açores, existe uma devoção muito generalizada a Nossa Senhora do Livramento, cujas origens se perdem na memória do tempo. Protectora dos homens do mar, a Virgem Santa empresta o nome a uma das instituições particulares de solidariedade social mais antigas de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores.
Fundada por decreto a 8 de Junho de 1853 por um grupo de senhoras angrenses, a Irmandade começou por acolher crianças e jovens órfãs do sexo feminino em regime de internato no Convento de Santo António dos Capuchos. O Asilo da Infância Desvalida iria abrir portas aos rapazes cerca de 40 anos mais tarde, com o nome de Orfanato João Baptista Machado e a partir dai a actividade na área das crianças e jovens em risco nunca mais parou, contando, actualmente com 130 utentes, apoiados por cerca de uma centena de funcionários.
Rute Machado está na instituição há 25 anos, sentindo-a quase como uma “segunda casa”. “Já foram tantas as crianças que por aqui passaram, são tantas as horas de convivência que isto torna-se mais do que um emprego, mas uma vida”, diz. A instituição acolhe meninos desde a nascença até, segundo os estatutos, aos 18 anos, mas essa barreira temporal apenas existe no papel, uma vez que muitos a ultrapassam largamente. “Eles só podem sair de cá, quando têm um projecto de vida e muitas vezes isso não acontece quando chegam aos 18 anos”, explica Rute.
A colaboradora faz-nos uma visita guiada pela instituição e explica que o sismo de 1980 que abalou toda a ilha, levou à construção de novos espaços para as crianças. Neste momento, o internato feminino funciona em seis casas, ligadas entre si, que se estendem ao longo de uma pequena rua e que permitem um certo grau de independência entre cada uma delas. Duas das seis casas estão ocupadas com crianças recém-nascidas de ambos os sexos. Já o internato masculino, que entre 1995 e 1999 foi dirigido pelos padres Salesianos está espalhado desde 1999 por sete casas completamente independentes e localizadas em diferentes zonas da cidade.
Cada uma das habitações é dirigida por uma encarregada, apoiada por auxiliares e ajudantes de lar, num ambiente o mais familiar possível. “Tentámos fazer com que se sintam em casa, mas é preciso entender que muitas destas crianças são difíceis e isso por vezes não se consegue”, explica Rute Machado. Numa das casas, fomos conhecer Maria (nome fictício), uma jovem de 15 anos que está há pouco tempo na Irmandade, por indicação do Tribunal de Famílias e Menores. Com o cigarro numa mão, a jovem fala descontraidamente, com aparente indiferença ao local onde está a viver. “Vim para cá porque o juiz mandou. Tenho problemas de comportamento e estar em casa não era bom para mim”, explica com naturalidade entre duas passas, na soleira da porta. Soubemos depois, pela encarregada da casa, que Maria é uma jovem com vários problemas comportamentais, proveniente de uma família desestruturada, a quem os técnicos têm muitas dificuldades em impor regras. Susana Oliveira, actual psicóloga da instituição explica que cada caso é um caso e que a tolerância e as regras são adaptadas, tendo uma base comum.
“Por exemplo, na questão do horário para os mais velhos, este é estabelecido consoante a maturidade de cada um, obviamente com um limite máximo para todos”, diz. A Casa de Transição está precisamente destinada aos jovens mais velhos, na qual auferem de um maior grau de autonomia e onde permanecem até conseguirem estabelecer o seu projecto de vida.
Para além destas valências, a Irmandade tem também em funcionamento uma creche e um jardim-de-infância inaugurado em 1986, que acolhe 80 crianças, que ajuda a equilibrar as contas da instituição. “Faltam sempre coisas, pois o dinheiro nunca chega para tudo”, lamenta Rute Machado e enumera as várias actividades que são desenvolvidas na Irmandade, com destaque para o clube de voleibol. Quase na totalidade as crianças estão completamente integradas na comunidade e frequentam todos os serviços que esta oferece, desde o desporto à catequese, “para que cresçam o mais normal possível”, esclarece Susana Oliveira.
Com a cidade de Angra, Património Mundial da Humanidade, como pano de fundo, a tradição de uma instituição com raízes na cidade, dá lugar à inovação dos conceitos e das teorias da educação, integrando os seus meninos e meninas como plenos cidadãos de direito e contribuindo para que caia no esquecimento o velho conceito do órfão e do desprotegido que esteve na base do seu nascimento.
Data de introdução: 2008-04-09