A história veio no Jornal de Angola, contada por Guilhermino Alberto Fernando: um velho de 66 anos (é-se assim tão velho em Angola, quando a esperança de vida não ultrapassa muitos os 40 anos), doente há três, internado durante dois, ergueu-se da cama do hospital e regressou a casa. Uma casa que ele próprio havia construído. Os filhos fecharam-lhe as portas e o velho acabou asilado num lar da terceira idade no Sumbe. Angola tem destes contrastes: era um bom lar de idosos, com 15 quartos, duas camas por quarto, num cenário nacional ainda de grandes carências.
O velho sente-se bem no lar. Tem tecto, três refeições diárias, uma cama, pessoas com quem pode conversar. Mas lamenta, amargo, a atitude dos filhos.
Em reacção à história ouvem-se vozes de incitamento ao regresso "às nossas tradições" - respeito pelos mais velhos; amparo familiar da velhice - e de desencanto por estar Angola (e África, em geral) a adoptar perigosos padrões de abandono dos seus familiares idosos, virando as costas a uma ancestral posição de protecção dos mais velhos.
Em África, e em Angola, portanto também, projecta-se sempre a imagem "dos mais velhos que cuidam das crianças que por sua vez haverão de cuidar dos mais velhos", imagem essa, no entanto, questionável.
Respeito e mistificação
O escritor moçambicano Mia Couto, que muitos "mais velhos" leva para o interior dos seus livros e às vezes subvertendo a ordem natural das coisas, como no livro Terra Sonâmbula, com um menino a ler histórias ao velho, considera que "a ideia de que em África os velhos são sempre respeitados, resulta de uma mistificação".
Numa entrevista ao jornal brasileiro O Globo, no ano passado, Mia Couto diz que "isso nem sempre acontece, mesmo em sociedades que não foram desarrumadas pela colonização", sendo, porém, verdade que "em certas sociedades o lugar dos mais velhos é fonte de prestígio e saber, mas não são todos os mais velhos, já que a idade é cruzada com a linhagem, a família, o sexo (a mulher sai desse espaço)".
O escritor considera ainda que "o actual universo de miséria absoluta vai corroendo aquilo que antes era dominado pelo respeito" e que "num mundo ajoelhado perante a mercadoria, está a suceder em África o que já sucede noutros pontos do mundo - os velhos e as crianças estão desvalorizados porque produzem pouco e compram ainda menos"
Ora, os velhos e as crianças sempre estiveram, em África, nos extremos do mundo dos vivos, ligado ao dos mortos, num diálogo constante regulador da vida na terra. E muitos anos vividos era um sinal de protecção dos antepassados e, por isso, o velho ditado africano diz que "a morte de um idoso não estraga a morte".
A urbanização crescentes dos africanos - largando, em nome da sobrevivência, as origens, as referências e os antepassados -, o novo meio hostil em que habitam, desaparecendo os pontos tradicionais de contacto entre os mais velhos (e surgindo, no seu lugar, enormes edifícios) e os mais novos, a diluição da força e da riqueza da oralidade, a derrocada de grande parte das tradições, as dificuldades: tudo isto se junta para a criação de novos conceitos, assentes, como noutros espaços, no individualismo e na desvalorização da família.
Não há inqueritos válidos.