1 - Já aqui lembrei, na crónica anterior, que nesta Primavera de 2008 se cumprem 50 anos sobre a campanha do General Humberto Delgado nas eleições de 1958 para a Presidência da República.
Humberto Delgado venceu as eleições, mas as chapeladas da máquina do Estado Novo e as vigarices das mesas de voto e das autoridades administrativas no apuramento dos resultados deram a vitória ao candidato oficial do regime, Américo Tomás, que na realidade as tinha perdido.
(As fraudes eleitorais não são exclusivo do Zimbawue, país que, para os mais novos, bem pode ser apresentado como um exemplo do que era a vida política em Portugal há 50 anos.)
Tenho poucas recordações da infância, como creio que sucede com as infâncias felizes e sem cuidados. Mas conservei sempre a memória de o meu Pai me ter levado consigo, pela mão, quando foi votar nesse dia à Junta de Freguesia de Ermesinde.
Não por nenhuma razão épica, de anti-fascismo precoce. Mas por ter feito anos - 6, para ser exacto – nesse já longínquo 8 de Junho de 1958.
Essa campanha comporta algumas lições. E uma delas é a de que, mesmo após uma persistente ditadura, com polícia política, censura e prisões arbitrárias – e, em 1958, já levávamos 32 anos de ditadura; mais quatro do que os 28 de Robert Mugabe -, um povo reprimido mantém a dignidade de dizer, quando pode, que quer mudar.
(“Mesmo na noite mais triste/ Em tempo de servidão/ Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não”)
Não foi fácil a vida para os apoiantes do General Delgado.
As listas dos proponentes da candidatura, dos representantes, dos delegados, foram vasculhadas de uma ponta a outra pela PIDE – e uns foram presos, outros demitidos, a outros esteve longamente vedado qualquer emprego público.
E em relação a todos lá foi feita a competente anotação na ficha respectiva da polícia política.
Convém na verdade lembrar a quem já se esqueceu, e explicar a quem nunca soube, que no regime deposto em 25 de Abril de 1974 quem se tivesse manifestado contra a “Situação” – palavra apropriada para explicitar a quietação e a natureza perpétua do regime – tinha direito a ficha personalizada nos arquivos da polícia.
2 – Durante o Estado Novo, não foram só as listas do General Delgado que suscitaram a gula controleira e repressiva do aparelho do regime.
Já uns anos antes, por ocasião de alguma abertura que o regime teve que mostrar após a vitória das democracias na 2ªGuerra Mundial - até para fazer esquecer a colaboração discreta que manteve durante a Guerra com o nazi-fascismo -, acontecera o mesmo com as chamadas listas do MUD – Movimento de Unidade Democrática.
Este Movimento, que serviu de suporte à candidatura do General Norton de Matos às eleições presidenciais de 1948 e às legislativas do mesmo ano, viu igualmente a sanha inquisitorial e persecutória da PVDE – anterior nome da PIDE – não descansar enquanto não deitava a mão às “listas”.
Acabaram por lhe chegar – e seguiram-se as prisões e demissões, de que foi emblema a expulsão do Professor Rui Luís Gomes da Universidade do Porto.
Este apetite dos aparelhos repressivos das ditaduras por “listas” de nomes de pessoas é fácil de explicar: facilita o trabalho da devassa e é como que uma confissão do crime – do “crime” da discordância e da dúvida.
3 – As listas hoje chamam-se bases de dados.
Mas parece que continuam a merecer das autoridades a mesma volúpia de antigamente.
Quer o PS, quer o PSD, que alternada e exclusivamente têm ocupado o poder praticamente durante todo o tempo da 3ª República, tiveram na sua constituição, em 1973 e 1974, uma fortíssima componente republicana e democrática, com experiência de oposição ao salazarismo e ao marcelismo e, portanto, particularmente sensível aos valores da liberdade individual e da resistência à opressão.
De forma porventura mais duradoura até por parte do PS, essa geração manteve-se ao leme desses dois partidos durante muito tempo – basta lembrar Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, António Guterres, Ferro Rodrigues, Francisco Sá Carneiro, Emídio Guerreiro, Nuno Rodrigues dos Santos, Mota Pinto, Francisco Pinto Balsemão.
Hoje, olhamos para a direcção de ambos esses partidos e percebemos que – felizmente para esses dirigentes – são póstumos em relação à Revolução de Abril, não tiveram a experiência da ditadura, para saberem por dentro dos seus próprios corações o valor supremo da liberdade.
Da liberdade – é logo a primeira – de dissidir; de discordar.
O Partido Comunista mantém, segundo julgo saber, uma escola de quadros, para, entre outras coisas, manter nos dirigentes mais jovens a mística (não sei se a palavra será aplicável ao PC…) da resistência e a fidelidade aos princípios que desde sempre estruturaram o Partido.
Tenho para mim que seria virtuoso o PS e o PSD fazerem o mesmo.
Convém não esquecer que, ao contrário dos seus fundadores que lutaram pela liberdade quando a luta doía e não era apenas, como hoje sucede, o viático para os lugares e as prebendas, a grande maioria dos militantes dos maiores partidos filiou-se neles à medida que foram ocupando, à vez, as cadeiras do poder, ou ao “cheiro dessa canela” de se aproximarem dessas cadeiras de novo.
Confesso que, velho que vou ficando, me dói lembrar que, 34 anos após o 25 de Abril, a polícia não perdeu o jeito de andar atrás das “listas”, como ainda há pouco sucedeu com as idas ao Sindicato dos Professores na Covilhã e a várias escolas desta cidade do Porto em que escrevo para recolher as listas de grevistas e manifestantes.
Com nomes, para facilitar, como sempre.
E também me passa um arrepio pela espinha quando ouço a displicência com que as autoridades falam de cruzamento de dados, nomeadamente em matéria fiscal e contributiva, e em penhoras electrónicas, a lembrar-nos que o Estado sabe tudo a nosso respeito e quer ser o nosso dono.
É certo que se ouve a voz de Manuel Alegre quando o PS, e o seu Governo, entram pela liberdade dentro.
O ponto é que essa voz não devia ser ouvida como um incómodo, mas como um magistério.
De modo que a minha proposta é esta: que o PS e o PSD criem uma espécie de comissão de ética, constituída por militantes com mais de 55 anos e com passado de luta pela democracia, com o mandato de verificarem a conformidade das medidas das autoridades com os valores da liberdade e autonomia individual.
Tenho já um processo para mandar para essa comissão: a Segurança Social está a pedir às Instituições Particulares de Solidariedade Social que remetam para essa autoridade pública as bases de dados dos seus utentes, por forma a identificá-los.
Que remetam as listas…
Claro que há vontade de saber, e de aprender, que é virtude. Mas há vontade de saber que é vício.
“Esta não é a minha polícia”, explicou, no seu tempo de Ministro, o Dr. Alberto Costa.
Nestes casos, é preciso ajudar as autoridades a desaprender.
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Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2008-05-09