As siglas

1 - Na Idade Média, era corrente os construtores dos templos, das singelas ermidas românicas às opulentas catedrais góticas, e também dos mosteiros, dos castelos e das fortalezas, deixarem a sua marca, a sua assinatura, num baixo-relevo cifrado lavrado nas pedras da construção.
Essas marcas, essas siglas, identificavam para os iniciados - e ocultavam a profanos -, umas vezes, o próprio artista, outras vezes a corporação a que esse artista estava vinculado.
Tais artesãos eram os chamados pedreiros-livres, que muitos consideram inscreverem-se na mesma linhagem simbólica que, vinda dos mistérios egípcios da Antiguidade, desagua nas associações esotéricas e nos movimentos gnósticos dos tempos modernos, de que a manifestação mais visível em Portugal – ou, talvez mais bem dito, menos invisível – é a chamada Maçonaria irregular, o Grande Oriente Lusitano, do rito francês.

(Existe, nas faldas do Montemuro, mesmo junto às águas ainda livres e límpidas do rio Paiva, no concelho de Castro Daire, perto dos limites da terra de Cinfães de onde em metade provenho, uma pequena ermida da minha particular devoção, a igreja de Ermida do Paiva, a que, justamente pela profusão dessas assinaturas cifradas, Aarão de Lacerda designou como o “Templo das Siglas”.
No seu Guia de Portugal, Sant’Anna Dionísio dá desse tópico a descrição seguinte: “O exame da cantaria revela grande profusão dos sinais característicos das obras de maçonaria da Idade Média. Alguns, bastante curiosos. Foi o que fez Aarão de Lacerda designar a igreja e torná-la conhecida por templo das siglas”.)

2 – A escrita cifrada tem também honrosas tradições na produção literária.
Quem fez, como eu, o liceu na área das humanidades há-de lembrar-se de que na poesia portuguesa dos sécs. XVI, XVII e XVIII era corrente o uso de anagramas, espécie de ocultação de um nome sob um outro nome, que consistia na diferente ordenação das mesmas letras que constituíam o nome oculto.
Exemplos típicos de anagramas são, como os meus leitores seguramente lembram, Binmarder por Bernardim, ou Belisa por Isabel, em Bernardim Ribeiro; e Elmano por Manuel, em Bocage; ou os pastores nas éclogas de Camões.

Havia também os acrósticos – de menor densidade literária ou artística -, que consistiam na construção ordenada de versos iniciados por cada uma das letras de uma palavra.
Perguntarão os leitores a que propósito vêm aqui os acrósticos, que somam à secura áspera do próprio nome de acrósticos o escasso interesse literário das versificações que originaram – e que parecem portanto arredios do estilo ligeiro que é o timbre das crónicas.
Pois vêm a pretexto da avalanche de acrósticos e siglas que nos infernizam hoje a vida – no País em geral; e nas instituições particulares de solidariedade social em especial.

Ainda ontem o “Público” dava conta de que o Parlamento Europeu, num imprevisto momento de sensatez, tinha deliberado aprovar “uma alteração ao Regulamento 854/2004, que estabelece as regras para o controlo de produtos de origem animal destinados ao consumo humano, permitindo aos pequenos operadores … ficarem isentos de aplicar os procedimentos de higiene com base nos princípios de Análise de Perigos e Controlo dos Pontos Críticos”, entre nós tratado pelo acróstico – britânico, isto é, civilizado -, de HACCP, sigla muito das canseiras cá de casa.

É sempre assim, nos excessos de zelo do HACCP como nos galheteiros da ASAE, estes também em boa hora regressados ao nosso convívio e ao bacalhau cozido: entradas de leão, voluntaristas e arrogantes; sendo precisa a realidade prosaica e comezinha – como é próprio das realidades -, para trazer essas bravatas de volta ao estábulo do sendeiro.
Quem diz HACCP diz ISO, petit nom que quem anda pelos corredores e pela burocracia da “qualidade” necessariamente declina no seu rol de desnecessidades – mas que é mais uma sigla oca para o mostruário, para o aplomb.

Continuando nas siglas que nos são familiares: nos investimentos, ao falecido PIDDAC seguiu-se o PARES – e, pelo meio, o PAII e o PAIES; na formação, o POPH, o PREAMP, o POEFDS, e tantos outros; para além do PNAI, do PCIPSS, do PCHI e do PAODP.
(Este desvanecimento moderno com os Planos foi a sorte do P. Por essa consoante começa a maioria dos acrósticos de última geração, tantos são os planos que se sucedem, se somam, se reproduzem. Dando à letra um uso intenso que a sua pronúncia agreste não merecia.)
Se sairmos do nosso campo semântico para o resto da actividade do País, o P não deixa de nos perseguir, comandando o exército dos acrósticos: é o PROTAL, o PDR, o PDM, o PNB, o PIB, o PRONORTE, e tantos outros Planos, Projectos, Altas Autoridades, Observatórios, Sistemas … – a que o jornal de hoje acrescenta, para nossa edificação e para que nada escape às grelhas classificativas – que as outras grelhas, as de assar o peixe, estão proibidas -, o SICAFE, Sistema de Identificação de Caninos e Felinos.

3 – Prefiro as siglas da igreja de Ermida do Paiva, debruçada sobre o vale do rio, edificada por dois frades agostinhos, da ordem premonstratense, às siglas que são produzidas pelo Conselho de Ministros com um fervor, uma devoção e um dogma certamente superiores aos dos frades do século XII.
As siglas da igreja são de pedra, bem sei.
Parecem até mais duras que as que nos assombram hoje os dias, feitas de palavras tão leves de tão ocas.
Mas às siglas que, em vez de nos elevarem a alma e nos aliviarem os dias, como as dos artistas medievais, os avassalam com arrebiques presumidos e inúteis, nunca há-de chegar o sopro dos versos de Carlos de Oliveira, na Cantata: “ó palavras de ferro, ainda sonho/dar-vos a leve têmpera do vento.”

* Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2008-07-07



















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