São espanhóis e vieram para Portugal dar colo e casa aos meninos e meninas que não o têm. Instalaram-se na freguesia de Canelas, em Penafiel, e há oito anos puseram mãos à obra e recuperaram um espaço a que chamaram “Refúgio do Amanhecer”. É uma instituição particular de solidariedade social (IPSS) que acolhe crianças vítimas de maus-tratos ou foram retiradas às famílias e entregues pelo Tribunal de Menores e Comissões de Protecção de Crianças e Jovens aos cuidados de terceiros. Casados e pais de duas meninas, de 5 e 7 anos e com uma terceira a caminho, fizeram de uma causa um projecto de vida e saíram de Sevilha para a pequena localidade de Canelas.
Ruben Rivera, de 32 anos, é assistente social de formação e a mulher, Loida Martin, professora do ensino especial. Conheceram-se na universidade e foi lá que contactaram com a AGAPE, um movimento cristão ligado ao “Campus Crusade for Christ International”, que era proprietário da Quinta da Bela Vista, onde funciona o “Refúgio do Amanhecer”. “Conhecemos a AGAPE ainda na universidade e, na altura, pensava abrir um local para acolher crianças. Nós interessámo-nos e estudámos a realidade portuguesa e pelas estatísticas vimos que existia grande necessidade deste tipo de instituições e então resolvemos vir”, explica Ruben.
O primeiro ano foi quase exclusivamente dedicado à preparação e remodelação do espaço que estava degradado. Não foi fácil a mudança: “Quando nós chegamos, isto não estava nada assim e vir de Sevilha para cá é uma grande mudança que mexe com muita coisa”, diz. Loida Martin refere também que Canelas possibilita o contacto com valores mais diluídos em grandes cidades: “É uma realidade à qual não podemos fechar os olhos e encontrei valores aqui muito importantes, como a família, o que em cidades grandes já se está a perder”.
O projecto está reconhecido como IPSS desde 2003, integra a Rede Social de Penafiel e acolhe crianças enviadas pelas entidades oficiais, mas apesar disso nunca receberam qualquer apoio da Segurança Social. “Desde 2003 que solicitamos um protocolo com a Segurança Social, mas foi sempre rejeitado”, lamenta Ruben. A instituição vive quase exclusivamente de donativos, uma vez que a equipa técnica (ele, a mulher e uma psicóloga, também espanhola e amiga do casal) é renumerada pela AGAPO. “Passo muito tempo a falar com muitas pessoas para conseguir apoios”, explica. Para além destes donativos, têm cerca de 150 sócios que contribuem mensalmente com quantias variadas para a instituição. “Temos um médico que nos dá 50 euros por mês, outras pessoas 20, depende das possibilidades de cada um”. Deste bolo sai ainda o ordenado dos outros 6 funcionários, o que torna muito difícil o equilíbrio orçamental. “Tudo o que vê aqui foi dado por alguém, desde os computadores, secretárias, tudo mesmo”, diz o assistente social. “Queremos trabalhar e é difícil sem apoios do Estado, mas que vamos fazer? Deixar de ajudar estes meninos?”, pergunta em tom de retórica.
A falta de dinheiro tornou o voluntariado num pilar fundamental para as necessidades diárias da casa. “Se precisamos de construir um espaço, eu ligo para empresários da construção civil e peço tijolos e cimento e depois falámos com trolhas que contribuem com o seu trabalho e funcionámos assim para quase tudo”, exemplifica Ruben. Outro dos exemplos mencionados é o caso de um dos guarda-redes da equipa de futebol “Naval 1º de Maio” que se desloca uma vez por mês, desde a Figueira da Foz até à instituição, para jogar futebol com as crianças. Ana Silva, educadora de infância, também conheceu a instituição na condição de voluntária pelas mãos de uma amiga. Natural do Porto, veio fazer voluntariado apenas por 2 semanas, mas o que encontrou fez com que não voltasse a partir. “Gostei tanto de cada minuto que passei enquanto voluntária que quis vir para cá trabalhar”, diz. A trabalhar há um ano e 3 meses na IPSS, Ana não tem dúvidas em afirmar que “cada sorriso, cada abraço que cada menino destes nos dá é maravilhoso e serve para nos motivar a continuar cá”. Quanto à iniciativa do casal espanhol, a jovem educadora acredita que é um “acto muito altruísta”. “Estão a dedicar a sua vida aqui, a estas crianças, e podiam estar no país deles, certamente a ganhar melhor, mas optaram por ajudar estes meninos”.
A instituição acolhe neste momento 11 crianças de ambos os sexos, embora tenha capacidade para 18. O mais velho tem 16 anos e o mais novo 4. Não querem crescer mais, pois a personalização é a característica distintiva do trabalho que desenvolvem. “Trabalhamos com poucas crianças para que o trabalho seja executado de uma forma pessoal e individualizada. Estas crianças, que têm um modelo familiar completamente desestruturado, se forem para uma instituição muito grande, com muitas crianças, absorvem a ideia de que são uma entre muitas, nós aqui queremos um modelo o mais familiar possível, com grupos pequenos”, explica Ruben. Este projecto pessoal para cada um tem, segundo o director, dado muitos resultados e alterado de forma significante a vida de muitos meninos que passaram pelo Refúgio. “Chegou-nos cá uma criança de etnia cigana, com 8 anos, que veio cheio de feridas e de cicatrizes. Essa criança estava habituada a comer na rua, muitas vezes, dos caixotes do lixo e quando cá chegou vinha com tanto medo que quando alguém se aproximava dela era muito violenta”, relembra Ruben. “Apresentava grandes problemas de desenvolvimento, não sabia comer e quase não sabia falar, mas connosco, aos poucos, começou a melhorar e ensinámo-lo a ler”. Esse menino, como outros casos de sucesso, acabou por ser adoptado por uma família de acolhimento, uma vez que a instituição também desenvolve um programa de apadrinhamento de crianças, em busca de famílias de acolhimento e de padrinhos dispostos a contribuir para o crescimento saudável de cada uma delas.
Os portões da casa estão sempre abertos e a ligação à comunidade é muito forte. As crianças frequentam as actividades da terra, desde a natação, à ginástica, ao futebol, etc. “Eles estão muito envolvidos na comunidade e são muitos os miúdos de fora que entram aqui na instituição para conviver com os nossos, seja para os aniversários, para as festas, para jogar futebol”, diz Ruben. Nelson, de 13 anos fez as honras da casa e mostrou as várias divisões. Nelson foi a primeira criança a entrar para o “Refúgio do Amanhecer”, ou seja, há 8 anos. Natural da Grande Lisboa, afirma que a melhor coisa que lhe aconteceu foi ter vindo para aquela casa. “Gosto muito de cá estar, porque tenho aqui uma família e muitos amigos e antes não era assim”, diz. Sonha um dia ser engenheiro mecânico, mas para já concentra-se nas brincadeiras próprias para as crianças da sua idade, sem grandes preocupações quanto ao futuro.
Uma situação que já é diferente para os mais velhos da casa que seguem um programa de autonomia e desenvolvimento pessoal desenhado à sua medida. “Temos dois jovens que querem ir para a universidade, estão muito motivados e nós trabalhamos essa autonomia, pois a ideia é que só saiam de cá quando estiverem preparados para a vida. Têm que ter autonomia emocional e financeira para isso. Até lá continuam connosco e cabe-nos a nós dar-lhes o máximo de ingredientes para que se tornem pessoas completas e bem inseridas na sociedade”, explica Ruben Rivera. Ao todo, já passaram pela instituição 33 crianças de todas as partes do país. Quando saem é motivo de felicidade para todos e em mais de 90 por cento dos casos o contacto mantém-se, garante o director.
No Refúgio ainda falta muita coisa, principalmente o apoio estatal, mas o positivismo do início mantém-se firme: “Faltam sempre coisas, mas sou muito positivo e acredito que vamos conseguir o que formos precisando”, afirma Ruben. Loida. Não esquece o “privilégio” de terem tantas pessoas a ajudar, mas espera que o apoio da Segurança Social “chegue um dia”. Quanto a regressar a Espanha, para já não faz parte dos planos do casal. “Pretendo ficar cá muitos anos, desde que a necessidade da nossa existência continue e que consigamos dar uma resposta social de qualidade”, garante Ruben. Por sua vez, Loida diz que o Refúgio é para ela “uma família com 11 crianças”, opinião partilhada por Nelson, para quem aquele casal é como se fossem os seus “pais”.
Data de introdução: 2008-07-16