“
Uma senhora de 47 anos, Isabel, que exerce a profissão de secretária, perdeu o marido, de 50 anos (Carlos), há quatro anos, num acidente rodoviário, quando a ia esperar ao aeroporto. Isabel revela sentimentos de agressividade que vinha sentindo, «por vezes eu ‘perguntava’ ao Carlos: porque me deixaste? Não vês a falta que fazes nesta casa? Agora que a vida nos corria tão bem é que decides abandonar-me?!... Passada toda aquela revolta, desfazia-me em lágrimas e culpava-me por ter sido egoísta, por lhe ter quase exigido que me fosse buscar…» E prossegue o seu relato, referindo a raiva sentida contra os familiares mais próximos, «tive conflitos frequentes com a minha filha, pois muitas vezes responsabilizava-me por não ter feito o pai feliz; já o meu filho remetia-se ao silêncio; senti que ele me evitava e isso irritava-me…». Relativamente aos restantes familiares, «apenas a minha irmã mais nova me deu algum carinho; todos os outros, quer fossem meus familiares quer do Carlos, trataram-me com toda a indiferença». Os amigos «não prestam; apenas vieram ao funeral e depois, quando me viam na rua, só se não pudessem é que não mudavam de passeio; ficamos com a sensação que temos peçonha…». Salienta que «fiquei, e por vezes ainda me sinto, revoltada com todos, o pessoal do hospital onde o Carlos esteve em coma, durante três meses, era extremamente antipático, o médico era horrível, não me dava informações nenhumas, acabei por fazer queixa dele ao director do hospital…» e, para finalizar, «até contra Deus me insurgi, eu que era crente… fiquei tão indignada com tudo que abandonei a Igreja…».” Este é um dos relatos descritos no livro “Desatar o nó do luto”, da autoria de José Eduardo Rebelo, professor na Universidade de Aveiro e doutorado em Biologia. Vítima de uma dolorosa experiência pessoal que lhe roubou a mulher grávida e duas filhas pequenas e após uma década de muito sofrimento, este professor resolveu investigar “o que é o luto e porque o fazemos”, como forma, de aliviar a sua própria dor.
“Apesar de fazer parte da vida, são poucos os que estão preparados para aceitar a morte de um ente querido. Em pleno século XXI, a morte continua a ser um tema tabu, sussurrado, falado a medo e, quase sempre, causador de uma dor profunda”, explica José Eduardo. Para poder ajudar aqueles que sofriam, José Eduardo fundou em 2004 a APELO, Associação de Apoio à Pessoa em Luto, da qual é presidente. “A APELO foi criada para ajudar as pessoas a aceitarem, interiorizarem e ultrapassarem o luto, numa lógica de partilha de experiências”.
Uma estrutura que nasceu em Aveiro, destinada a atenuar a dor dos vivos e que está empenhada em criar uma rede de centros regionais de apoio, numa lógica de proximidade a quem precisa. A associação já deu apoio a cerca de 400 pessoas, todas afectadas pela dor da perda de alguém que lhes era próximo. O livro é uma espécie de relato de um drama familiar e, ao mesmo tempo, um auxiliar precioso para o entendimento das consequências do luto e a recusa emocional da perda.
Reuniões, grupos de inter-ajuda, palestras em escolas e universidades, programas de rádio, publicações, sessões de terapia e consultas técnicas, têm sido acções da APELO. Em apenas dois anos a associação multiplicou-se por 16 zonas, com os Capelos (Centros de Apoio à Pessoal em Luto), embora nem todos a trabalhar ao mesmo ritmo. Vários voluntários que sofreram perdas emocionais profundas, ou que simplesmente estão solidários ajudam quem está a passar por um processo de luto. Um dos grandes objectivos da associação, sediada em Coimbra, passa por conseguir estender-se a todos os recantos do país, de forma a chegar àqueles que enfrentam a dor da perda. Em Portugal já existiam algumas associações vocacionadas para lutos específicos, desde pais em luto, a mães que perdem os bebés durante a gravidez, mas a APELO sentiu a necessidade de criar uma associação que pudesse abarcar o luto nas suas várias vertentes, por entender que este processo incorpora fases semelhantes, independentemente da perda sofrida.
De uma forma geral, explica o presidente, a associação tem apostado em diferentes actividades ao mesmo tempo. O lado da formação e da procura de mudança de atitudes tem sido uma das principais frentes de batalha. “Temos ainda que apostar bastante mais no apoio em grupo, aquilo a que nós chamamos os grupos de partilha”, diz. Os grupos de auto-ajuda já existem um pouco por todo o país. Não estão espalhados de forma uniforme, mas sim, uma vez mais, adaptados às necessidades de cada zona. “Uma vez por mês reunimos. A entrada é livre, quem quer aparece. Há a apresentação de um tema relacionado com a construção e a perda de afectos e depois, partilham-se experiências entre as várias pessoas que ali estão”, explica José Rebelo. O aconselhamento é outra das modalidades do apoio prestado pela APELO. Para isso, cada um dos CAPELOs tem um número próprio, fácil de consultar no site da instituição (www.apelo.org.pt).
A formação sobre o tema da morte e do luto é, para José Eduardo Rebelo, uma das missões da associação. «Infelizmente, não há técnicos do luto, não há cadeiras no ensino superior a ele dedicadas e por isso mesmo não há médicos, psicólogos ou assistentes sociais devidamente preparados para lidar com o tema nem com quem precisa de ajuda”, lamentou. Daí dedicar uma atenção especial à formação e, para isso, a associação organiza frequentemente acções de formação. Por outro lado, o professor tem dado palestras e conferências de pós-graduação em diversas universidades do país e, ao abrigo de protocolos, a associação tem recebido recém-formados para estágios.
A investigação em torno das necessidades sentidas na realidade portuguesa é outras das actuais apostas da associação. “Nos outros países existem já muitos trabalhos acerca desta temática, mas em Portugal conhece-se ainda muito pouco”. Para combater essa lacuna, a APELO tem vindo a estabelecer protocolos com alguns institutos e universidades. Estudar a relação entre os ritos culturais de uma determinada sociedade e os processos psicológicos pode ser uma das formas de conhecer melhor o cenário português. “Na nossa sociedade havia antigamente a questão do uso da roupa de luto. Estava estipulado em termos sociais. Hoje sabe-se que há uma correlação muito forte entre aquilo que é esse tempo da cor preta no vestuário com o tempo psicológico de resolução típica do luto”, explica.
Também em termos sociais, acreditam os investigadores, pode ser possível estabelecer relações entre a forma como o luto é vivido e o tipo de apoio prestado pela comunidade. “Quando morria alguém, toda a comunidade se movia no sentido do apoio àquelas pessoas, através dos velórios e em termos do acompanhamento daquela família. As pessoas iam lá levar comida, durante os primeiros tempos, as vizinhas iam lá a casa, sentavam-se e falavam com as pessoas”. Saber de que forma um movimento comunitário consegue ajudar uma pessoa que vive um processo de luto pode ser outro dos contributos da ciência para ajudar quem enfrenta uma perda.
Terminado o processo de luto, há várias pessoas que escolhem permanecer na associação e ajudar outros que enfrentem situações semelhantes. “Acham que têm aqui uma missão e encontram uma forma de se realizarem a elas próprias”, explica José Eduardo Rebelo. Outras há que optam por se afastar e seguir outros percursos. Todo o trabalho da APELO, salienta o responsável, é desenvolvido apenas por voluntários. Devido ao trabalho atípico prestado pela associação não recebem qualquer apoio estatal e estão legalizados enquanto associação privada de solidariedade social. “Gostaríamos de ser uma IPSS, porque seria muito mais fácil concorrer a outros projectos e financiamentos que a nossa condição actual não permite. Agora, nós não trabalhamos em função de subsídios”, reitera. A especificidade do trabalho também dificulta o enquadramento no sistema de apoio da Segurança Social.
O desejo do presidente da APELO é que esta, um dia, funcione como uma estrutura de apoio indispensável ao nível das instituições públicas, por exemplo, hospitais, que face a situações de luto no contexto da sua actividade, recorram aos serviços da associação. “A Lei portuguesa apenas concede oito dias de férias para viver o luto e depois disso exige que o trabalhador esteja apto a realizar o serviço como se nada se tivesse passado, ora isso é impossível”, diz, “por isso é preciso educar para o luto e é preciso que existam estruturas de apoio permanentes durante todo o processo que pode demorar anos a estar concluído”, explica.
Data de introdução: 2008-08-11