1. Pobreza, marginalidade e delinquência são conceitos e realidades que a sociedade maioritária tem vindo a associar. Certamente por mentalidade, mas também por comodismo.
Se marginalidade e delinquência muitas vezes se irmanam, não é menos verdade que, historicamente, elas estão longe de traduzirem uma acção contígua.
Claramente identificado no século XII, quando a cidade deixou de comportar todos os que a ela afluíam, o marginal era então aquele que vivia à margem, pobre e desempregado, impossibilitado de integrar o normal comportamento de quantos se enquadravam na nova sociedade urbana. Embora condenado a uma difícil sobrevivência nos subúrbios, onde permanecia enquanto vegetava, ele não era necessariamente o salteador ou o assassino! O conceito rapidamente se alargou ao doente, nomeadamente ao leproso que, por decisão maioritária, era repelido para a floresta – símbolo de noite e escuridão - para não contagiar o mundo socialmente aceite.
A pobreza como sinónimo de falta do mínimo vital é um fenómeno comum a todos os tempos, potencialmente constituída quando, para citar Jean Jacques Rosseau, alguns homens se lembraram de colocar umas estacas à volta de um terreno e declarar “isto é meu!”.
O processo histórico encarregar-se-ia de alargar o conceito de marginal, fazendo-o abranger todos os que, por actividades ilícitas, eram socialmente excluídos.
Assim, se a noção de pobreza pode integrar os outros dois conceitos – marginalidade e delinquência - ela não se identifica necessariamente com eles.
2. Vêm estas reflexões a propósito do nosso quotidiano actual, num país ainda apresentado como sendo de brandos costumes mas no qual, nos últimos meses, somos sacudidos por sucessivas notícias de assaltos, roubos, assassínios e mortes. É a delinquência transformada em violência, geradora de crescente insegurança, e à qual subjaz, por critérios que não cabe aqui analisar, uma certa sensação de preocupante impunidade.
Hoje, como ontem, pobreza, marginalidade e delinquência não podem nem devem ser metidas no mesmo saco! Contudo, é com assombro que se assiste à tentativa de “mostrar serviço” por parte de autoridades, proporcionando reportagens em directo e notícias sobre rusgas, preferencialmente a bairros sociais, como se, ali e apenas ali, estivessem escondidos todos os males da sociedade e todos quantos ali vivem fossem gente suspeita.
Entretanto, como que para entreter, descobriram-se dois casos que se eternizam em grossos processos a bloquear tribunais e a branquear uma turva justiça, ao mesmo tempo que os potenciais crimes de “colarinho branco” se arrastam em morosos inquéritos, quase sem fim à vista ou prolongando prazos que, porventura inconscientemente, permitem que se venha a atingir a prescrição!
E nesta sociedade maioritária, com acesso à aldeia global, descansamos consciências buscando no pobre, também indefeso, a origem de todos os males!
3. Os bairros sociais carecem de maior atenção. Eles que são reflexo de alheamentos colectivos, erráticas políticas sociais e ostracismos educacionais. Muitos deles surgiram à margem de qualquer ordenamento do território, não têm beneficiado das necessárias obras de requalificação, beneficiação ou enquadramento ambiental, recebem novos moradores sem terem sido acolhidos e integrados e vêem-se convertidos em guetos.
Se há perigos nos bairros sociais, e há, também lá há pessoas, muitas, quase todas as pessoas, que aspiram por uma vida que as circunstâncias lhes têm recusado. Mais do que emparedar os bairros sociais ou fazê-los cercar de contingentes de forças de segurança, é imperioso e urgente olhar para eles e perceber que não há sucesso em políticas sociais sem envolvimento das populações e sem a promoção da sua autonomia pela educação e pelo empreendedorismo. Reforçar o aparato securitário à volta dos bairros começa a ser perigoso e favorecerá uma maior estigmatização dos seus moradores que poderão mergulhar numa revolta que apenas será secreta enquanto não explodir.
Importa, que, para si e para a sua acção, as cabeças pensantes deste país esclareçam os conceitos sobre os quais vimos reflectindo. Só então será possível buscar a delinquência e o crime nos seus reais agentes – vivam eles em bairros de realojamento ou em apartamentos de luxo! Só então será possível deixar que o pobre – esse sim, vivendo muitas vezes em bairros de realojamento ou em pequenos apartamentos de zonas menos favorecidas – encontre também a tranquilidade no seu quotidiano e possa continuar a sua árdua luta pela dignidade e pela vida!
* Presidente da CNIS
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