O inimigo principal

1 - Há quase 15 anos, exercia eu funções de direcção na Administração Pública, um então deputado, durante uma reunião em que estive presente, disse esta frase lapidar, que resumia o que ele entendia dever ser a linha de acção dos Serviços Públicos: “O que é de lei é para todos; o que não é de lei é para os amigos.”
Tratava-se – trata-se - de um dirigente partidário de algum relevo, de um dos partidos que nos têm governado, que frequentara essa verdadeira escola de quadros do Bloco Central dos negócios que foi Macau nos anos 80 e 90, onde também sacudira para si a árvore das patacas e que, como é da norma, por cá montou depois os seus negócios à sombra e à custa do Estado – “encostado” ao Estado, como ainda há dias disse em Lousada o Presidente da República a propósito de boa parte dos empresários portugueses.
Na reunião estavam pessoas, como eu, que esse deputado nunca vira. O que significa que, ao enunciar o referido princípio, estava apenas a dizer o que para si era óbvio, uma espécie de verdade adquirida, sem qualquer consciência de que estava a proferir uma iniquidade.

Era – e é - de um dos partidos de Governo. Mas se fosse de outro qualquer dos partidos do chamado arco governamental, essa noção básica de que o Estado serve para favorecer os amigos seria certamente formulada por muitos com o mesmo tom de se afirmar uma evidência.
Desse mundo sombrio dos negócios e dos pareceres, dos gabinetes e dos estudos, dos consultores e dos especialistas em coisa nenhuma, senão em ganhar dinheiro à conta de necessidades inventadas e de fornecimentos inúteis, todos pagos pelo Orçamento do Estado ou pelas empresas públicas, vem de vez em quando alguma coisa à tona – uma pequena parte, como é próprio do que se passa à puridade.
Mas é o bastante para percebermos que boa parte do nosso dinheiro vai para esse mundo discreto mas imenso dos amigos.

2 – “O que não é de lei é para os amigos” – dificilmente se encontraria melhor formulação para explicar a distribuição das casas do chamado património disperso da Câmara Municipal de Lisboa, assunto à tona dos jornais nos últimos dias.
Trata-se de casas atribuídas pela Câmara a artistas e jornalistas, a funcionários e dirigentes – sem critério, sem concurso, nuns casos de graça, noutros por valores simbólicos -, numa prática que já vem desde pelo menos 1970, e que sempre se manteve fora do escrutínio e do conhecimento público.
Quer os anteriores presidentes da Câmara ouvidos, quer os prebendados, explicam que se não trata de habitação social – assim justificando as cedências.

Esquecendo-se, no entanto, de acrescentar que, para além de não serem de habitação social, são em regra muito melhores e mais bem localizadas do que estas.
De todos os casos que vieram a lume, o que considero mais exemplar desse entendimento de que o favor aos amigos faz quase parte da natureza das coisas foi o de um dirigente da Câmara, que justifica ter-lhe sido atribuída uma casa por se ter divorciado, ficando sem local para residir. E que na posse da casa se mantém - não obstante já lá não habitar há anos, por entretanto se ter recasado -, a pretexto de poder vir a divorciar-se de novo, querendo manter a casa de reserva para esse imprevisto.
E veio explicar isto, com total ingenuidade, aos jornais – como se a virtude da coisa fosse, na verdade, uma evidência.

3 – Para me manter no registo autárquico, impõe-se também uma referência à “Chama da Solidariedade” e ao percurso festivo que fez, atravessando meio País.
Foi muito grande o envolvimento de juntas de freguesia e câmaras municipais, cujo dinamismo contribuiu de forma decisiva para o sucesso da Festa da Solidariedade, e que constituiu um bom exemplo do que pode e deve ser a cooperação a nível local.
Às vezes esse envolvimento terá até sido manifestado porventura de forma excessiva.
Em alguns locais, a Câmara até parecia querer ser a dona da festa e dos foguetes, numa aparente tentativa de apropriação de uma festa e de um clima que desbordava fora dos círculos dos poderes.
Numa altura de aparente recuo da atribuição de competências novas, em matéria social, às Câmaras Municipais, não podemos baixar a guarda.

O Ministro do Trabalho, na intervenção com que encerrou a Festa da Solidariedade, não deixou de lembrar o dever de apoio, por parte do Estado e – referiu-o expressamente – das autarquias à acção das instituições do mundo solidário, em cooperação e parceria, com respeito e autonomia.
(A propósito da antiga e persistente vontade, por parte da Associação Nacional de Municípios, de “tomar conta” da cooperação, anda muita coisa mal contada. E uma delas é a de que tal corresponderia a uma descentralização, a uma maior proximidade, de certas atribuições públicas, que passariam do nível central, do Governo, para o nível mais local, das Câmaras.
Essa ideia é falsa.

Tal corresponderia, pelo contrário, como nos diz a experiência, a uma maior concentração e estatização.
É que, no terreno, quem desenvolve a acção social não é o Governo – são as Instituições.
Aquilo a que iríamos assistir, se a transferência de competências se viesse a verificar nos termos em que ameaça sê-lo, não seria a um esvaziamento material das funções do Estado, já vazio delas, mas a uma apropriação pelo nível local público das competências que são desenvolvidas pelo nível local solidário - a exemplo do que já acontece em alguns locais, como no Porto.
Há assim que continuar a evitar o abraço do urso.
E não é exacta – ou sempre exacta - a ideia de que o que está mais próximo é melhor, que é outro dos argumentos com que a A.N.M.P. acena.
O Presidente Mao Tsé Tung, à questão da identificação do inimigo principal, explicava: o inimigo principal é o que está mais próximo.
Com essa ciência, venceu-o sempre.

*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2008-10-09



















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