“Reinventar a Solidariedade (em tempo de crise)” é sinónimo de recuperar o sentido de participação cívica, concluíram os especialistas presentes no simpósio promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa, a 15 de Maio, em Lisboa, enquadrado nas comemorações do cinquentenário do Santuário do Cristo Rei (de Almada). A iniciativa procurou traçar o diagnóstico da actual conjuntura e encontrar novos modelos de desenvolvimento, associados a novas formas de solidariedade. A ideia base foi promover a interpelação da sociedade portuguesa, convocando os cidadãos para uma reflexão profunda sobre o futuro da solidariedade, sem prejuízo da manutenção do apoio imediato, através da fórmula assistencialista. Para o comissário do evento, João Menezes (presidente da TESE), “uma resposta não é a única razão que suscita o simpósio. Há uma razão mais estruturante: questionarmos os modelos de desenvolvimentos actuais, na certeza que a crise pode ser uma oportunidade para um futuro modelo que seja mais humano e solidário, mais criativo e também mais participativo”.
Ao longo de quase 10 horas mais de mil pessoas assistiram aos diagnósticos e propostas apresentados por peritos em diversas áreas, desde a escola à cultura, da economia à política, da assistência institucional a novas formas de solidariedade, da comunicação social ao ambiente, procurando ultrapassar uma visão financeira e economicista da crise que atinge o mundo.
Diagnóstico da situação actual
Dividido em dois grandes painéis de debate, a manhã ficou marcada pelo diagnóstico da situação actual, nas perspectivas do desenvolvimento, economia e sociedade.
Após a abertura do simpósio, a cargo do arcebispo primaz de Braga, D. Jorge Ortiga e do cardeal arcebispo de Tegucigalpa (Honduras), D. Óscar Maradiaga, também presidente da Cáritas Internacional, a socióloga Isabel Guerra traçou o diagnóstico da sociedade actual baseada no poder económico e na lei de mercado como factores dominantes de acção. A especialista relembrou que a situação mundial se traduz pelo agravamento das desigualdades entre as regiões do mundo e no interior de cada país, do qual emana uma visão empírica de que não há uma relação linear entre o crescimento económico e a coesão social. Portugal não foge à regra e continua a ser um dos países europeus com uma elevada taxa de pobreza, em que cerca de um quarto da população é pobre e que uma parte significativa dos pobres têm emprego.
Para Isabel Guerra este agravamento da situação mundial encontra origem “nas transformações da organização social, dos sistemas produtivos, aumento do desemprego e particularmente do desemprego de longa duração, transformação da família, etc.”. A socióloga diz ser urgente a procura de outro modelo civilizacional, menos dependente do consumo e socialmente mais justo, mais amigo do ambiente, mais solidário e com novas alianças entre o poder político, a sociedade civil e o mercado. Isabel Guerra elege o reforço da coesão social como uma prioridade política, uma tarefa colectiva que implica mudanças profundas nos modos de vida dos cidadãos e que “só pode ser resultado de um aumento da consciência e da solidariedade colectiva”.
O economista João do Amaral traçou uma perspectiva pouco animadora para o futuro do país. Segundo o especialista a crise portuguesa é estrutural e agravou-se na última década de que são sinais o aumento da taxa de desemprego, a estagnação económica e o endividamento das famílias. “Há interesses colectivos que é preciso preservar e um dos grandes erros dos últimos 20 anos no sistema económico foi pensar que só havia os interesses de cada um e que o mercado resolvia tudo. É necessário um Estado regulador, que enquadre o mercado de forma a ser posto ao serviço da sociedade”, defende. João do Amaral disse ainda que só com o investimento público e com transferências para os que mais precisam é que se pode garantir a procura interna e dessa forma “sustentar” a economia. “Não vamos conseguir ultrapassar a crise, vamos é conseguir manter a situação em níveis suportáveis”, afirma. O especialista relembra que mesmo depois da crise internacional passar, Portugal terá de ultrapassar a sua própria crise e que para isso é necessário “mobilizar toda a sociedade”.
A encerrar o painel de convidados da manhã esteve Rosário Carneiro, especialista em Ciências Sociais e Políticas que defendeu a ideia da recuperação da “centralidade” do indivíduo. “Esta crise é um pretexto para reavivar os valores essenciais da relação humana e permite-nos procurar sinergias para relançar uma sociedade mais solidária”. Para oradora os vários governos têm assentado numa premissa ideológica que reconhece o indivíduo como o centro, mas que descura as questões da relação. “Esta centralidade individual é perniciosa, porque se perdem os valores da relação, da partilha e tudo passa a ser permitido”. Para Rosário Carneiro esta opção ideológica “influencia a formação das políticas”, e dá como exemplo as políticas de família.
Pistas e ideias para o futuro A tarde ficou marcada por um vasto painel de convidados de variadíssimas áreas de intervenção que sugeriram linhas de acção ou apresentaram exemplos para “reinventar a solidariedade em tempo de crise”. Adoptar uma família pobre, quantificar a ajuda prestada pela Igreja, apostar na educação dos jovens e crianças desfavorecidos, encontrar novos líderes e novos valores para a vida económica foram algumas das ideias apresentadas pelos oradores para alterar a sociedade portuguesa, que lidou mal com a globalização e vive um défice de confiança.
Eugénio Fonseca abriu a ordem de trabalhos defendendo a ideia de que a “proximidade ajuda a resolver os problemas”. O presidente da Caritas Portuguesa apontou algumas linhas de acção: “existências de grupos sócio-caritativos em todas as paróquias, grupos que integrem cristãos comprometidos nas diversas áreas”; “elaboração de estatísticas periódicas” e “intervenção junto dos centros de decisão política”. A pobreza foi outra das temáticas abordadas, sendo considerada pelo director executivo da Amnistia Internacional Portugal como “uma violação dos direitos humanos”. Na sua intervenção subordinada ao tema “A pobreza não é inevitável”, Pedro Krupenski realça que, por detrás, da pobreza “estão as discriminações e as explorações”. Esta nasce também de algumas “decisões do governo”. No fundo “todos somos responsáveis” – disse.
O director executivo da Amnistia Internacional Portugal aponta três eixos estratégicos:
“Chamar à responsabilidade aqueles que faltaram aos compromissos”; “Fomentar a participação das pessoas” e “permitir o acesso” às várias oportunidades.
A necessidade de intervenção da sociedade civil na formulação de políticas e na monitorização dos gastos públicos nas políticas sociais, foi uma advertência feita por Marina Costa Lobo, investigadora em ciência política. Optando por analisar a pobreza, como “índice indicativo da políticas públicas de solidariedade”, e especificando nas crianças “porque estas não votam”, a politóloga afirmou que o Estado português é o menos eficaz na redução da pobreza infantil, no contexto europeu. As propostas apresentadas indicam a necessidade de aumentar os gastos com as despesas sociais “em programas específicos” e melhorar a eficiência dos gastos nessas mesmas despesas sociais. “O dinheiro é gasto mas não tem impacto”, apontou Marina Costa Lobo.
Também a sociedade civil “deve ajudar o Estado a aumentar os gastos socais e a ser mais eficiente”, participando activamente na formulação de políticas.
Marina Costa Lobo indicou a falta de diálogo entre os Ministérios do Estado no âmbito da política social e deixou um apelo à Conferência Episcopal. “A Igreja deve ser mais activa na definição das políticas sociais e aumentar responsabilização do Governo neste domínio”.
Pedro Calado, do Programa Escolhas defendeu a ideia de envolver os jovens na construção do bem comum. Subordinado ao tema “Jovens em risco, cidadania e coesão social”, o orador explicou este projecto de apoios aos excluídos. Depois de aconselhar “pararmos para escutar...”, este elemento do Programa Escolhas mostrou um vídeo onde os jovens dos bairros sociais colocam em destaque os seus problemas. Para além de sublinharem os seus problemas, os mesmos jovens dão sugestões para alterarem a sua própria situação social.
Teresa Couceiro, presidente da Fundação Gonçalo da Silveira, desenvolveu o tema “Construir Pontes na fronteira”, e disse que são precisas respostas “originais na fronteira e com a fronteira, pois o desenvolvimento tem de ser englobante”. A presidente da Fundação Gonçalo da Silveira recordou acções pequenas. “Usar apenas o essencial e com o resto, organizar vendas solidárias, cujo fundo reverte para os moradores do meu condomínio que têm dificuldade em pagar renda, a escola dos filhos e material escolar”.
As famílias com maior disponibilidade “podem adoptar a pobreza de outra família com menos possibilidades” e “dar um subsídio mensal aos mais desfavorecidos”.
Rentabilizar os funcionários nas empresas “para que possam ajudar em instituições sociais e estimularem o voluntariado”. Teresa Couceiro lembrou que construir pontes “entre mais e menos desfavorecidos implica uma mudança na sociedade” onde são precisas “pessoas, instituições e empresas”.
Ao falar sobre “Cultura, desenvolvimento e solidariedade”, o escritor Jacinto Lucas Pires refere que o sistema de educação em Portugal deve ser alterado. “Liberdade de escolha de ensino” foi uma das propostas do escritor. E exemplificou: “um aluno de bairro pobre estudar num colégio de ricos”. Em relação à política, Jacinto Lucas Pires apela a uma melhor solidariedade. “Olhar a política como um lugar mais nobre”. As mentalidades não se mudam rapidamente. Todavia apela à mudança “do desenho da lei eleitoral”. “Talvez tornasse a política mais transparente”. A cultura não é uma “espécie de circo” – denuncia o escritor. A cultura ajuda a construir mentalidades. Num mundo multicultural, “estas experiências são fundamentais para compreender o mundo” e ajudam ultrapassar a crise vigente.
O secretário-geral da Associação Cristã de Empresários e Gestores, Jorge Líbano Monteiro, veio propor levar Deus ao mundo económico. O dirigente afirmou que a economia e as empresas “precisam de líderes com valores e convicções capazes de marcar a diferença, testemunhando valores na sua vida concreta”. “Tentam banir a Igreja da sociedade portuguesa, mas esta é o maior empreendedor social de Portugal”, destacou, afirmando que, mesmo sem saber o mundo e a economia têm falta de Cristo. O empresário pediu que se comece por “gestos pequenos”. Acreditar nos colaboradores e acreditar nos valores “mesmo se por vezes não se consegue ultrapassar a lógica das empresas”. Assumir critérios de boa fé com clientes, pagar a horas aos fornecedores e aos funcionários, foram alguns desafios lançados. Este, afirmou, “é um desafio que se realiza diariamente no interior da empresa e não pode ser publicitado em qualquer programa”.
Sucederam-se as diferentes intervenções e Joana Rigato, vice-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) apresentou as conclusões finais com destaque para a necessidade de recuperar o sentido de participação cívica como transversal a quase todos os oradores.
A encerrar os trabalhos esteve o cardeal patriarca de Lisboa. D. José Policarpo sublinhou que esta iniciativa lança um alerta e uma interrogação: “queremos resolver a ‘crise’ ou queremos também ‘escutar’ a crise? É que do fundo do seu drama pode estar a surgir a voz que desafia todos, pessoas e estruturas, a porem-se a caminho, mudando em favor do homem, renovando-se em nome da família humana”. A Igreja pela mensagem de que é portadora e pela presença organizada em todo o mundo é chamada “a estar na primeira linha de discernir a mensagem dessa consciência colectiva e de a consolidar como mensagem de esperança para um futuro novo”.
Data de introdução: 2009-06-03