1 - Se o destino da Alexandra fosse a votos, como outras questões internacionais, em 7 de Junho, o sufrágio teria, penso eu, um resultado quase unânime: a criança ficaria em Portugal, confiada à família de acolhimento e seria revogada pelos eleitores a decisão judicial que a encaminhou para a mãe – e para a Rússia.
Mais do que isso. Creio que, sobre o tema, todos os partidos defenderiam o mesmo, numa unanimidade idêntica à da nova lei sobre o financiamento dos partidos: a criança ficaria em Barcelos, com os “pais de afecto”.
É essa mesma unanimidade que a imprensa procura impôr, dado o interesse mediático do “enorme potencial de manipulação de notícias que, nestes dias de desvalorização “fracturante” da biologia (hoje ser pai ou mãe “biológico” é uma condição menor na maternidade/paternidade) se pode realizar com filmes e cenas de filme cuidadosamente escolhidas”, como, a propósito deste caso, escreveu José Pacheco Pereira no Público de 30 de Maio.
Na SIC, lá tivemos os especialistas do costume, com a conversa do costume: o psicólogo Eduardo Sá, para quem é necessário distinguir os conceitos de “progenitor” e de “pai”, como se fosse evidente tratar-se de coisas diversas; a Drª Manuela Eanes, do Instituto de Apoio à Criança, propugnando pela mudança da lei que permitiu ao Tribunal decidir, neste caso, como decidiu e que trazia um abaixo-assinado para promover as alterações legislativas de que, a seu ver, havia precisão; e o ex-bastonário Rogério Alves, comentador encartado sobre praticamente tudo o que mexe, a opinar, como sempre, de acordo com o que o auditório quer ouvir.
Para todos eles, a decisão da Relação de Guimarães errou e não teve em conta o “superior interesse da criança”.
2 - Já tive ocasião, nestas crónicas, a propósito do caso da Esmeralda, de dizer o que penso do que seja essa noção tão invocada, a propósito e a despropósito, do superior interesse da criança e da forma como é chamada à liça sempre que ocorre um caso destes, cuja solução não merece o acordo das cabeças canónicas.
A meu ver, os equívocos são dois:
- Em primeiro lugar, fala-se às vezes do superior interesse da criança como se tal quisesse significar que a criança tem mais direitos do que os outros.
Do que os adultos, por exemplo.
Tal não é verdade, nem é aceitável.
Trata-se, aliás, de uma noção anti-democrática.
Os sistemas democráticos tem como primeiro alicerce a igualdade de todos perante a lei e idêntica densidade de direitos assegurada pelo Estado para todos por igual – pequenos e grandes, mulheres e homens, brancos e negros.
Admitir que uns, embora pelas razões mais estimáveis deste mundo, têm mais direitos do que os outros é abrir o caminho ao arbítrio e à autocracia, senhora sua filha.
- O segundo equívoco é o de se invocar o superior interesse como se esse fosse uma noção operativa por si só, uma evidência, isto é, como se não fosse necessária uma instância ou entidade competente para mediar, para definir, em cada momento, a forma como se concretiza esse interesse e como o mesmo deverá ser conjugado com outros interesses, de outros interessados.
3 – Ora, é aqui que bate o ponto: quem é que diz, quem é que define, em cada situação concreta, de que forma se realiza esse superior interesse?
Dito de outro modo, mais aproximado à realidade concreta do caso da Alexandra: que entidade deverá ser a legalmente competente para retirar um menor da sua família biológica e confiá-la à tutela de uma outra família ou de uma instituição?
A resposta não tem muito que saber:
Nas democracias, quem pode modificar as relações familiares, quem pode intervir sobre a naturalidade da relação biológica como fundamento das relações familiares, são os Tribunais.
Não é o Governo, nem os Serviços deste dependentes.
A pressão mediática e o receio de remar contra o pensamento dominante pode às vezes fazer esquecer que, quando se defende que as decisões judiciais nestes casos não poderão ir contra os pareceres dos pedopsiquiatras, ou dos psicólogos, ou dos assistentes sociais e que estes deverão prevalecer sobre aquelas, o que se está no fundo a dizer é que deverá ser o Governo – ou a Administração Pública, que é o mesmo – a determinar as medidas tutelares cíveis.
O Governo passaria a ser a última instância.
Com efeito, ninguém está a ver uma lei a dizer que a competência para decretar uma inibição do poder paternal ou uma confiança de menor, para fins, por exemplo, de adopção seja atribuída directamente à Drª Manuela Eanes, ou ao Dr. Eduardo Sá, ou mesmo ao Dr. Rogério Alves, apesar de eles próprios saberem sempre qual seria a melhor decisão.
Como se sabe, as leis não atribuem tais competências a pessoas em concreto, de forma inorgânica.
As competências são conferidas a instâncias, a entidades orgânicas.
É por isso que a alternativa é a que referi:
- ou continuam a ser os Tribunais, com as suas imperfeições mas com as suas regras próprias, uma das quais é a de as decisões poderem ser objecto de recurso, dentro da organização judicial:
- ou passariam a ser os Serviços da Administração Pública, sujeitos à hierarquia e à obediência em relação aos Governos - e às influências e cunhas, como é da praxe.
- ou, como às vezes parece querer dizer-se, os Serviços da Administração Pública que produziram os estudos psicológicos e relatórios sociais que os Tribunais não subscrevessem de cruz poderiam vetar a aplicação das decisões judiciais.
Sucede que a primeira modalidade é democrática.
A segunda é própria das autocracias.
A terceira é um disparate e uma aberração.
4 – O caso da Esmeralda, que tanta paixão suscitou - ao ponto da recolha de assinaturas de protesto em bombas de gasolina -, e de que hoje ninguém fala, não serviu, pelos vistos, de lição.
E são agora os próprios relatórios dos Serviços da Administração Pública a confirmar a justeza e o acerto da decisão do Tribunal nesse caso.
(O que não ouvimos, nesses longos meses que o caso durou nos jornais e televisões, sobre a irrelevância da relação biológica com o Sr. Baltasar e sobre o inevitável destino funesto que se prognosticou à criança.
Houve até um psicólogo que advertiu para risco de morte…!)
Infelizmente, este caso e esta decisão também não servirão de lição.
A tentação de substituir a natureza é muito forte e redunda na arrogância de quem sabe sempre o que fazer com os filhos dos outros.
Mas, se é certo que
errare humanum est, perseverare diabolicum.
5 - (Em jeito de
Post-scriptum)
“ … (o Manual) … trata-se de um compêndio de regras … mais precisas e pormenorizadas do que o manual de instruções de uma máquina de lavar a roupa. Mais rígidos que o regimento de disciplina militar, estes manuais não são novidade. Podem consultar-se os dos últimos quatro anos. São essencialmente iguais e revelam a mesma paranóia controladora: a pretensão de regulamentar minuciosamente o que se diz e faz …”
Não, caros leitores.
Este texto de António Barreto, publicado no Público de 24 de Maio, não se refere aos Manuais de Boas Práticas das Respostas Sociais.
Tem como alvo o Manual de Procedimentos que o Ministério da Educação enviou às escolas com as indicações sobre o que os professores podiam ou não dizer na sala de exames – como se só pudessem saber o que está na cartilha.
*Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2009-06-03