SOLIDARIEDADE – Nos tempos de crise que correm as IPSS ganham um reforçado papel, quer nas iniciativas que desenvolvem quer nas parcerias com os poderes? Há novos desafios para as IPSS?
PROF. EUGÉNIO FONSECA – É um papel decisivo e imprescindível. Estamos a falar de uma situação social que envolve cidadãos que, a maior parte deles, se confronta pela primeira vez com esta realidade da privação de recursos necessários para a sobrevivência. Por isso, vivem esta realidade, numa primeira fase, procurando escondê-la porque ela acarreta consigo uma quebra de estatuto social. As pessoas vivem a situação de forma escondida, envergonhada. A metodologia mais adequada, para irmos ao encontro destas pessoas, é a proximidade. Para além da família o que está mais próximo destas pessoas são as organizações, como é o caso das IPSS. Por um lado, através dos colaboradores directos, têm conhecimento das pessoas que estão em situação de dificuldade; por outro lado, muitas destas situações têm sinais dados através dos seus utentes, sejam filhos, sejam pais, sejam familiares mais afastados que ficaram no desemprego que é a causa estrutural da crise que estamos a viver. Portanto, as IPSS desempenham um papel importante na identificação. Nós sentimos a angústia de sabermos que existem, mas elas não querem aparecer porque acalentam a expectativa de resolverem os problemas. Vão aparecer um dia com problemas gravíssimos e aí as IPSS talvez já não consigam fazer nada. Resta-lhes o encaminhamento e os cuidados dos que estão na dependência desses desempregados.
Provam as estatísticas que Portugal não conseguiu resolver o problema da pobreza crónica. Agora existe esse fenómeno dos novos pobres que também se escondem das estatísticas. Tem ideia que a pobreza está a aumentar assustadoramente no nosso país?
Em Portugal nunca se conseguiu resolver estruturalmente a questão da pobreza porque nunca se conseguiu ter uma intervenção com princípio, meio e fim em três sistemas fundamentais: educativo, da segurança social e do trabalho. E tudo conjugado com uma correcta política de fiscalidade. Tivemos sempre uma segurança social sempre assente sobretudo no domínio da acção social e pouco nos direitos sociais. Um sistema
educativo que se generalizou depois do 25 de Abril, mas que não tem sido inclusivo. O próprio sistema alicerçou-se na base da competitividade, excluindo sempre os mais fracos, gerador de assimetrias. No sistema do trabalho, porque tendo havido uma evolução das novas tecnologias, ficaram para trás aqueles que, por falta de formação profissional ou escolaridade básica, não conseguiram competir e cedo foram excluídos do mercado de trabalho. Nós temos uma pobreza em Portugal muito característica: os dois milhões de pobres são sobretudo trabalhadores e pensionistas. Não é verdade que só é pobre quem quer porque trabalho não falta. Há muita gente que trabalha e é pobre na mesma: os que têm trabalho precário e auferem vencimentos baixos. O sistema de segurança social funciona com paliativos que vão alimentando os pensionistas. Nos últimos anos tem havido algumas medidas interessantes: o complemento solidário para idosos, que veio a atenuar a agressividade da pobreza mas não resolveu os problemas; o RSI fez o mesmo. Eu não gosto muito da terminologia “novos pobres”. Não quero catalogar de pobres as pessoas que estão a ser vítimas desta crise. Quero apenas reconhecer que estão a ficar privadas de recursos, embora a pobreza seja exactamente isso. Mas a etiqueta é muita pesada. Assim que encontrarem trabalho elas superam imediatamente a situação. Tenho receio que alguns, por falta de competências e pela idade, possam não voltar ao mercado de trabalho. São os desempregados de longa duração. Nos dois milhões de pobres existem novos pobres onde se cruza a pobreza com a exclusão social. Esses não aparecem na estatística. Os sem abrigo estão fora, ninguém sabe quantos são; os portadores de deficiência e muitos outros. Os que estão temporariamente privados de recursos se não forem ajudados, rapidamente entrarão na categoria de novos pobres.
O sector solidário pode ser visto como uma espécie de quartel de bombeiros da área social?
Nós estamos a viver uma calamidade económica e financeira com reflexos inevitáveis na vida social e pessoal. Nesse sentido as IPSS devem ter respostas de primeira linha. Se a pessoa tem fome deve matar-se a fome, se não tem habitação deve encontrar-se… O sector solidário pode ser visto assim. Mas não é só isso. As IPSS são e têm procurado ser, como comprovam os números, suscitadoras de desenvolvimento, criando postos de trabalho, sendo motivadores de novas ideias de empreendedorismo. Não são instituições assistencialistas, mas são elementos essenciais para o desenvolvimento. A crise que estamos a viver supera a questão financeira e económica: é uma crise de modelo civilizacional. Temos que transformar o paradigma. Temos que passar da centralidade do lucro, da competitividade sem regras, onda assenta este modelo neo-liberal, para o modelo onde a pessoa seja o centro de todas as motivações económicas. A economia que seja apenas instrumental e não um fim em si mesma. As IPSS estão no coração desse modelo. Se quisermos ter como referencial aquilo que são as preocupações das instituições, que é no fim de contas a pessoa e o seu desenvolvimento integral, nós temos aí um referencial para a tal mudança de paradigma.
Em certa medida esta crise também debilita as instituições. Também há IPSS que são novos pobres, estão em dificuldades…
Esse estudo temos que o aprofundar. Julgo que em breve a CNIS terá números objectivos. Isso é muito importante. Temos a obrigação de ajudar essas instituições que não podem dispensar os serviços que estão a prestar às pessoas, só porque elas deixaram de poder pagar. Seria contrariar a matriz para a qual foram criadas. Mais vale afundarem-se, mas nunca rejeitar ninguém que provadamente não pode cumprir com a sua comparticipação. E aí o governo tem uma responsabilidade acrescida. É bom que se monitorize essas IPSS para que através delas se possa chegar à raiz do problema que são as famílias desses utentes. É um risco e uma oportunidade para ajudar a resolver os problemas das pessoas. Disse o ministro Vieira da Silva ao SOLIDARIEDADE que nenhuma destas instituições há-de ruir por falta de apoio, mas temos que identificar quem são essas IPSS, quais são as razões que levam os utentes a deixar de pagar. Porque incobráveis sempre houve…
Mas não pensa que devia haver um reforço de apoio governamental para que as IPSS funcionassem como almofada social?
Sem dúvida, mas compete-nos a nós identificar o problema, quantificá-lo, para depois apresentar ao governo uma proposta concreta para dar sustentabilidade a essas IPSS. O governo tem dito que está atento e que vai ajudar, mas temos que conhecer a realidade. Julgo que em breve a CNIS estará em condições de dizer ao governo quem são as instituições que, por via da crise, passam por dificuldades, separando-as daquelas que têm problemas estruturais de sustentabilidade.
É uma questão interessante a sustentabilidade das IPSS. Cada vez se defende mais que ela tem que ser garantida por outras vias. Defende a empresarialização das IPSS para garantir a sobrevivência?
Não tenho dúvidas de que quanto mais as instituições conseguirem ser sustentáveis no domínio financeiro melhor será, ao nível da autonomia da preservação da identidade e da própria criatividade. Agora não sei, sobretudo nestes tempos que correm, como é que isso se consegue. Há uma fronteira entre o lucrativo e não lucrativo que tem que estar bem definida. Quando uma IPSS desenvolve iniciativas criativas para a sua sustentabilidade ela começa a entrar no domínio do lucrativo. Há um problema de concorrência com outras organizações, apesar do fim ser sempre diferente. O governo, seja qual for, tem que clarificar os limites desta participação das IPSS na economia não solidária, cujo objectivo é servir de fonte de financiamento.
Era uma espécie de economia paralela para financiar a economia solidária… Afinal, é aquilo que as empresas estão a fazer com a designada responsabilidade social. Seriam empresas sociais… Não tenho dúvidas que as IPSS têm que pensar em meios de auto-financiamento. Exige uma grande preparação dos dirigentes, muito discernimento, grande criatividade e estabelecimento de critérios para evitar confusões com o sector lucrativo.
Mas essa via não acaba por exigir um certo grau de profissionalização dos dirigentes das IPSS? Não os transforma em gestores sociais?
Eu quero desde já, e temos dado passos para isso, que os dirigentes das nossas instituições sejam já profissionais. Há uma distinção entre o ser profissional e o ser funcionário. O que está em causa é a disponibilidade de tempo e grau de conhecimentos. O regime de voluntariado pode não ser suficiente. Pode haver necessidade de profissionais, no sentido das competências. Actualmente a lei, o 119, permite que a complexidade da gestão das instituições ou outras razões, bem esclarecidas nos órgãos próprios, nas assembleias, vierem a verificar necessários, a lei permite que alguns dirigentes possam ser remunerados. Não tenham dúvidas que, se entrarmos em dinamismos que tenham em vista a sustentabilidade, temos que ir por aí. Sempre para o maior bem das causas que as instituições servem. Mas eu continuo a dizer que tem que ser sempre e só quando se justificar. O voluntariado é a matriz das nossas instituições e não pode perder-se.
Isso favorecia o rejuvenescimento das IPSS?
Quando se fala de rejuvenescimento não deve pensar-se só na idade. O mais importante é a mentalidade. E muitos dirigentes estão a fazer o esforço de se adaptar às novas exigências do tempo actual. Não tem que ver só com idade. É verdade que a disponibilidade é maior em pessoas que já não estão no mercado de trabalho, que são seniores. Terão menor agilidade mas mais experiência e conhecimento. É benéfico que haja uma vaga de dirigentes mais novos para que as equipas directivas das IPSS conjuguem a experiência com a juventude na defesa das causas sociais.
Falemos da CNIS. Considera que esta equipa, da qual faz parte, eleita para mais três anos de mandato, tem conseguido fazer a defesa eficaz dos interesses dos seus associados?
Esta é uma altura problemática, não só para a CNIS mas para as organizações que representem sectores. Nós estamos a viver um período difícil que não é exclusivo do nosso país. É mundial. Nós, IPSS, temos que ser parte da solução para a superação da crise. Acho que é difícil estabelecer um crivo entre aquilo que se deve exigir e o que se pode exigir. Temos que ser realistas. No contexto actual nem o Estado nos pode pedir mais, até porque há instituições que estão a passar por dificuldades, nem nós podemos exigir mais do que é concedido a outros. Tem que haver bom senso que não prejudique o caminho já andado. Não nos podemos aproveitar da crise como já tem acontecido no sector lucrativo. Tem que haver bom senso da CNIS, do governo e dos sindicatos. A CNIS, sobretudo o seu presidente, tem tido a sabedoria de, sem hipotecar as respostas às reais necessidades das instituições no tempo presente, ser solidário na solução que é preciso que todos encontremos para a crise. Isso teve uma expressão muito concreta, por exemplo, na adesão que a CNIS e outras organizações deram aos programas de inserção e emprego lançados pelo governo. Há muitas instituições a receber desempregados.
Como define o relacionamento que tem existido com o governo e sobretudo com o ministro Vieira da Silva? O ministro Vieira da Silva tem tido a gestão das pastas mais difíceis: a solidariedade e o trabalho. E tem revelado serenidade e capacidade de diálogo. Tem havido tensão entre a CNIS e o governo, principalmente com o Ministério da Educação, e tudo se tem resolvido na base do bom senso e do diálogo. É a única forma de se dirimirem desencontros. Da parte do governo, Vieira da Silva, e da parte da CNIS, padre Lino Maia, tem havido a destrinça entre reinvindicação e oposição. Não compete à CNIS fazer oposição a nenhum governo. Não foi, não tem sido e, em meu entender, a CNIS não deve ser oposição a nenhum governo. E, no entanto, não deve deixar de reinvindicar para as IPSS as condições necessárias para o desempenho da sua função social.
Estamos em vésperas de eleições. A CNIS deve tentar esclarecer e influenciar as forças políticas no sentido da defesa dos interesses sociais que preconiza?
É o que estamos a fazer. O presidente tem participado em debates de cariz partidário para ajudar os partidos a formularem políticas do sector social. Tem dialogado com todos os grupos parlamentares. Recebe todas as delegações partidárias que solicitem reuniões. Neste momento está a contactar os partidos, revelando as ideias principais que a CNIS defende para o sector solidário. Tudo deve ser feito num período pré-eleitoral. Durante o período de campanha deve abster-se de participar, mantendo equidistância.
V. M. Pinto (texto e fotos)
Data de introdução: 2009-07-07