A tragédia que se abateu sobre o Haiti despoletou uma enorme onda de solidariedade internacional. A reacção do mundo foi extraordinária, como reconheceram alguns dos responsáveis por ONGs portuguesas. De tal modo que, mais do que noutras situações de catástrofe, se levantaram problemas de como gerir correctamente tal afluxo de generosidade.
Essa reacção de solidariedade deve-se não só às consequências terríveis do sismo, mas, sobretudo, à cobertura mediática que o tremor de terra, justificadamente, motivou. Todos sabemos do impacto decisivo que as imagens e as “estórias” das tragédias têm sobre os consumidores da Informação, sobretudo da Televisão. Aliás, poucos dias depois do abalo, Francisco José Viegas, jornalista e escritor, falava mesmo de “voyeurismo”, a propósito da maioria das reportagens enviadas do Haiti. À falta de notícias, repetiam-se, até à exaustão, as mesmas imagens trágicas, com a certeza de que elas responderiam à apetência de quem se sentava frente aos televisores, à espera de mais sangue e de mais lágrimas.
O Haiti, não obstante o seu grau de subdesenvolvimento, pertence ao hemisfério ocidental e todos sabemos que a influência deste mundo sobre a informação é incomparavelmente mais forte do que em qualquer outra região do planeta. Os órgãos de comunicação começaram, de imediato, uma verdadeira disputa sobre qual conseguiria “agarrar”, mais e melhor a desgraça que se abatera sobre aquele país, de tal modo que a tragédia do Haiti se tornou a tragédia de todos nós.
Este espírito de solidariedade e de disputa atingiu também os países. Aparentemente, nenhum quis ficar de fora neste campeonato. Os estados mais próximos do Haiti, sobretudo os mais poderosos, marcaram imediatamente terreno. Na Europa dos 27, que não reagiu tão cedo, lamentava-se que a União não tivesse agido de forma mais rápida e visível. De tal modo que a ideia de uma força civil de intervenção rápida foi equacionada pela primeira vez. A intervenção americana atingiu um grau tão elevado que logo surgiram reacções negativas e insinuações mais ou menos veladas, vindas da França, ou ataques claros, vindos da Venezuela e de Cuba. A tragédia tornou-se um bom pretexto para o aparecimento das famosas teorias da conspiração. O clima de suspeição vai, certamente continuar.
O facto é que, graças a uma enorme tragédia, o Haiti tornou-se num terreno favorável à disputa por um lugar de honra no campeonato da solidariedade. Até algumas igrejas, oriundas, sobretudo, de meios fundamentalistas cristãos americanos, entraram nesta competição, esperando crescer à custa das dificuldades de um povo tradicionalmente católico. Não nos atrevemos a afirmar que seja esse o seu objectivo, nem podemos reduzir a interesses criticáveis tantas manifestações de solidariedade, mas a História ensina que as grandes tragédias sempre foram motivo de aproveitamentos condenáveis.
António José da Silva
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