1 - “ - Será já amanhã!
- Eminência, o faisão …
- Como Arcebispo de Ostia e Cardeal-deão,
cumpre-me receber o embaixador de França!
Dir-lhe-ei …
- Eminência, a humanidade avança!
Não é justo cerrar-se ao pensamento humano,
Como uma porta de ouro, o velho Vaticano!
Dir-lhe-á?... Que poderá dizer Vossa Eminência?”
À gente da minha idade, que fez o liceu antes ainda da reforma de Veiga Simão, nos anos 70 do século passado, serão porventura ainda familiares as ressonâncias destes versos alexandrinos com que começa a Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas, peça de teatro que tem como núcleo as evocações da respectiva mocidade por parte de três cardeais, durante um jantar requintado, em Roma: o Cardeal Rufo, espanhol; o cardeal Montmorency, francês; e o cardeal Gonzaga, português.
(Como hoje nas anedotas, há sempre nestas histórias, que envolvem protagonistas de várias nacionalidades, um português - que é invariavelmente ou o herói, ou o mais esperto, ou o mais generoso …)
No meu 6º ano do liceu – actual 10º ano de escolaridade -, numa das aulas, fui durante algum tempo o Cardeal Montmorency, numa representação que, eu e dois colegas, fizemos da peça.
Creio que já o sabia antes. Mas, se o não soubesse, soube a partir desses meus 15 anos que aos cardeais devíamos o tratamento protocolar de “Vossa Eminência”.
(Júlio Dantas não é nenhuma estrela na constelação das letras pátrias, sendo considerado um expoente do academismo e do conservadorismo estético na transição do século XIX para o século XX.
Teve a duvidosa honra, aliás, de ser o alvo simbólico do desdém do Modernismo que se lhe seguiu, que lhe arremeteu, pela pena de Almada Negreiros, o célebre “Manifesto Anti-Dantas”.
Autor pouco interessante, na verdade. Mas cujo conhecimento dos traços gerais da obra, com outros, de maior significado estético e cultural, como Sá de Miranda, António Ferreira, Camões, Frei Luís de Sousa, Verney, Bocage, Rodrigues Lobo, fazia parte da educação da época.
Cidadão que se prezasse, lia os clássico.
Era, como dizia o Eça, “a basesinha, menino, a basesinha”.
É certo que o conhecimento da cultura portuguesa apresenta, para o pensamento hoje dominante, uns fumos de antiguidade e de mofo pouco compatíveis com a vertigem e o culto do instante que passa, com plataformas electrónicas e planos tecnológicos que nos hão-de colocar invariavelmente na linha da frente – é sempre na linha da frente! – do progresso.
E que são o novo credo.
Mas continuo a pensar que é mais importante os alunos das nossas escolas saberem quem foi Fernão de Magalhães e a importância que teve para o conhecimento do mundo em que vivemos do que fazerem de conta que aprendem pelo computador que lhe roubou o nome.)
2 - Vem desse título de Eminência que cabe aos cardeais a designação de “eminência parda” que atribuímos àqueles que, na sombra, influenciam as decisões de quem está no palco do poder – pela similitude do relevantíssimo papel do Colégio dos Cardeais no processo, reservado e secreto, de eleição do Papa e também pela transposição do cargo que os cardeais Richelieu e Mazarino exerceram, como Primeiros-Ministros, junto do Rei de França, durante o Antigo Regime.
Essas eminências pardas são verdadeiros cardeais sem tonsura.
José Sócrates não foi bafejado pela presença e aconselhamento sábio de nenhum cardeal, no seu círculo restrito, mas a Joaquim Pina Moura, durante o Governo do Engenheiro António Guterres, não escapou a designação amável e sibilina de “Cardeal”, que lhe foi atribuída com justiça pela imprensa e pelos círculos políticos da época – precisamente em homenagem ao papel determinante que teve, como conselheiro privilegiado do então Primeiro Ministro.
(Mas também há Papas sem cardeais.
Jorge Nuno Pinto da Costa não tem “eminências” à sua volta. Nem pardas, nem alvas.)
3 - Creio que data de momento anterior, ainda da infância, a noção que tive de que o Papa era “Sua Santidade” – distinguindo-se, na hierarquia implícita na diversidade de tratamentos, da “Sua Eminência” própria dos cardeais.
Guterres também não se enganava na distinção e não foi por Pina Moura que o soube – mas por o ter aprendido em pequeno.
Causou-me todavia espanto o facto de o Primeiro-Ministro, conquanto laicista e grande reformador dos costumes – sempre a ambição da modernidade e da primeira linha entre os demais países! -, se ter referido a Bento XVI, por três vezes, como “Sua Eminência”, em vez da “Sua Santidade” canónica, quando foi recebido pelo Papa, por ocasião da Sua recente visita a Portugal.
Pedro Silva Pereira não é Pina Moura, é certo. Ainda não tem a púrpura …
Mas estávamos habituados a ver o Primeiro-Ministro, em matéria de comunicação, não falhar nunca, alicerçado numa eficácia discursiva absolutamente blindada e na preparação minuciosa, longa e sistemática que efectuou para o cargo.
Poucos dias depois, de resto, essa perda de rigor nas marcações – como diria qualquer comentador desportivo – voltou a sentir-se a propósito do alcance das medidas e do início dos efeitos do PEC II, com membros do Governo a garantirem, por um lado, que seria de um modo; e o Chefe do Governo a assegurar que, pelo contrário, seria de outro.
Ainda em matéria de linha de rumo, o grande tema que extremou posições durante a última campanha eleitoral para as legislativas, o de saber se deviam ou não fazer-se as grandes obras públicas - que já tinham custado o lugar a Campos e Cunha, primeiro Ministro das Finanças de José Sócrates, que entendia que não e que bateu com a porta, há já 5 anos – tem tido por parte do Governo uma evolução semelhante a uma prova de esqui alpino.
A ponto de hoje a sua posição nada ter já que a distinga da defendida pela Drª Manuela Ferreira Leite durante a campanha.
Ora, também aqui a implacabilidade discursiva do Governo deixou o flanco surpreendentemente aberto.
Com franqueza: melhor pareceria, aos olhos de todos, acabar de vez com a ideia das grandes obras públicas que foram o sumo da campanha – recapitulemos: o TGV de Lisboa ao Porto e de Lisboa a Madrid, com a terceira travessia do Tejo em Lisboa, o novo Aeroporto de Lisboa e não sei quantas novas concessões rodoviárias em imparcerias público-privadas – do que ir sucessivamente recuando, às ordens da Alemanha, até ficar reduzida a uma caricatura: a linha de alta velocidade que ligará a Europa ao … Poceirão.
O Governo já deu conta do ridículo e veio tentar corrigir o tiro, voltando a acenar com a terceira travessia.
Mas o simples facto de se ter dito, nem que apenas por dois ou três dias, que a linha acabaria no Poceirão, no meio do deserto, destoa no que foi, até agora, a consistência e coesão do discurso do Governo.
Ou não.
Pode sempre tratar-se de uma metonímia: para dizer-nos que chegamos ao fim da linha.
E que o fim da linha é um Poceirão: suficientemente grande para engolir o comboio, o novo Aeroporto, que é ao lado, as promessas destes últimos 30 anos – e, de caminho, todos nós, aos trambolhões.
Henrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2010-06-08