Dois séculos de História(s)…
A segunda invasão francesa no Porto, em Março de 1809, deixou marcas profundas na cidade. O general Soult, vencida a resistência local, entra na cidade: a população, em pânico, procura refúgio na outra margem do rio, em Gaia. Mas a Ponte das Barcas, que liga as duas cidades, não suporta tanto peso, tamanho pavor. Rebenta. Mais de quatro mil pessoas morrem. Apesar de ter sido curta a passagem das tropas napoleónicas pelo Porto, deixaram atrás de si um rasto de crianças louras. O povo, que vivia momentos muito difíceis, não perdoou nem às mães nem aos filhos a ligação inevitável aos ocupantes de quem descendiam e levantou-se uma onda de ira popular.
Havia, portanto, a necessidade de proteger mães e filhos da fúria popular e foi isso que fez António Lourenço de Jesus. Este portuense ligado aos negócios recolheu as mães e respectivos filhos loiros num prédio da Póvoa de Baixo, na freguesia de Santo Ildefonso, ou seja fora muralhas da cidade que, na altura, terminava na zona que é actualmente a Batalha. É assim que em Janeiro de 1810 nasce ao Obra de Nossa Senhora do Resgate e do Livramento.
Oito anos depois, a casa já acolhia 58 mulheres e à porta batiam mais pedidos de ajuda. De tal forma, que em meados do século XIX, a casa passa a estar dividida em três secções: uma para as raparigas, outra para as mães e outras mulheres que pediam refúgio e a terceira para os rapazes. No espírito da rigorosa separação dos sexos que vigorava naquela época, os rapazes saíram, em 1814, para uma casa que na altura era conhecida como Seminário dos Meninos Desamparados e que depois de diversas mudanças tornou-se no actual Instituto Juvenil de Campanhã.
Quanto ao Lar de Nossa Senhora do Livramento, este continua a servir a cidade e a ele é agregada outra instituição com os mesmos fins, partilhando entre ambas a cozinha, a capela e o quintal. É criada uma comissão administrativa e em 1857 são elaborados os primeiros estatutos. A administração começa então a procurar fontes de financiamento, muitos delas vindas dos emigrantes portuenses no Brasil.
No início do século XX, o Lar já acolhia mais de uma centena de crianças e as instalações tornavam-se demasiado pequenas. “A direcção que estava em exercício em 1903 resolveu iniciar diligências para encontrar um terreno mais vasto”, explica Almeida e Sousa, presidente do lar há mais de 40 anos e tratado por todos como o Senhor Engenheiro. Em 1907, a direcção consegue comprar um terreno, situado na actual Rua Santos Pousada e inicia a construção do novo equipamento, que recebeu a visita do então rei de Portugal, D. Carlos. “Quando a monarquia caiu, caiu também a influência dos dirigentes e protectores da Obra, além de que a situação económica de muitos beneméritos da instituição alterou-se”, refere Almeida e Sousa.
As diversas contrariedades atrasaram a construção do edifício e só em 1921 é que a instituição abre as portas nas actuais instalações. “Apesar dos tempos serem outros, a casa, no seu funcionamento, continuava a ser uma instituição muito fechada e muito fiel aos valores da época”, descreve o actual presidente. As camaratas longas, os tectos altos, a robustez de um edifício ladeado por altos muros reflectiam-se na educação religiosa severa e de acordo com os costumes. As meninas frequentavam apenas o ensino primário, dentro da instituição e depois dedicavam-se a aos lavores, bordados, trabalhos domésticos e pouco mais.
Só na década de 70 e com o amanhecer do 25 de Abril de 1974 é que se dá uma mudança efectiva…
O Lar no contexto actual
Quem entra no número 182 da Rua Santos Pousada, inclina-se perante a imponência do prédio, com reminiscências de um passado monárquico ao gosto da robustez e dos velhos valores instituídos.
Palmira Moreira é religiosa no Lar desde a década de 80. Pertence à Congregação das Irmãs do Sagrado Coração de Maria que cuida das jovens internas há 35 anos. “Quando vim para cá, na década de 80 ainda existiam regras muito firmes, pouco adequadas à realidade dos tempos e foi necessário alterar”, diz a actual directora técnica. A religiosa explica que o Lar não tem ligação directa à Igreja Católica, mas é de inspiração cristã.
As longas camaratas foram substituídas por seis unidades familiares, onde as utentes são repartidas consoante a idade. Cada unidade está a cargo de uma educadora, que trabalha permanentemente com aquele grupo. “Aqui não se fazem turnos, cada educadora torna-se numa referência muito forte para as meninas e queremos manter isso, para que se sintam sempre individuais e não parte de um todo homogéneo”.
Com 58 crianças e jovens, a maioria na adolescência, a instituição adaptou as antigas regras inflexíveis para uma postura mais actual e moderna. O testemunho de uma antiga aluna revela que antigamente, a partir dos 12/13 anos, não lhes era permitido sair à rua sem acompanhamento e até as visitas a familiares estavam vedadas. A partir do 25 Abril, as internas passaram a frequentar a escola pública, o que lhes permitiu uma maior abertura à comunidade. Contudo, há princípios básicos que as irmãs fazem questão de manter. “Estamos numa sociedade difícil em termos de educação e nós tentamos transmitir-lhes os valores do respeito e do civismo, tendo uma base cristã”, explica a directora técnica. Quando estão na instituição, as alunas frequentam a igreja e a catequese. Até hoje, Palmira Moreira garante que não apareceu um caso de uma criança com outra confissão religiosa, pelo que essa norma nunca se revelou um problema. “Quando vão de fim-de-semana para as famílias de afecto ou biológicas ou quando fazem outros serviços, nós não andamos atrás delas para ver se vão à missa”, afirma.
Todas as crianças são encaminhadas pelas comissões de protecção de crianças e jovens ou pelos tribunais e cada vez mais chegam numa idade mais adulta. “Antigamente vinham mais pequeninas, agora a maioria chega na adolescência com 13 e 14 anos, o que dificulta muito o nosso trabalho”, refere a responsável. Palmira Moreira explica que o Lar está vocacionado para a prevenção e que é muito mais fácil traçar projectos de vida com crianças do que com adolescentes. “Uma das meninas que nos chegou veio de uma família com pai alcoólico e tinha sido abandonada pela mãe. Tem 15 anos e assim é muito difícil conseguir agir”. A directora técnica diz ainda que também acontecem casos em que as jovens saem dos cuidados da instituição muito precocemente, podo em risco o seu futuro. “Por vezes são os próprios tribunais e a Segurança Social que propiciam situações complicadas. Ainda no ano passado tivemos duas meninas que por ordem do tribunal foram devolvidas à mãe, apesar do parecer desfavorável dos técnicos e hoje custa-nos muito vê-las completamente perdidas”.
A articulação com as escolas é uma das preocupação do corpo técnico, que tenta assegurar um acompanhamento contínuo de cada uma das utentes. “Sempre que uma das meninas consegue sair da instituição com um projecto de vida alicerçado, é motivo de felicidade para nós”. No Lar são também proporcionadas acções de formação e reuniões temáticas, sempre de acordo com temas do interesse das utentes. Existem também outras actividades promovidas por voluntários como a dança, o ballet e explicações.
A instituição está fechada duas noites por ano: na noite de Natal e na noite de Páscoa. Nessa altura, todas as jovens são encaminhadas ou para famílias de afectos ou para a família biológica, quando tal é possível. No Verão, a equipa técnica organiza colónias de férias, normalmente na zona da Árvore, em Vila do Conde e da Apúlia.
O Lar dispõe ainda um jardim-de-infância aberto ao público em geral, que é também uma forma de receita para equilibrar as contas.
Quanto ao futuro, o presidente diz que apenas deseja que a instituição continue a dar a resposta adequada às pessoas que dela precisam. Já Palmira Moreira vai mais longe. “Temos uma atitude aberta à mudança e tenho consciência que o modelo de uma grande instituição não é defendido pela Segurança Social. A aposta está a ser feita nas unidades de acolhimento mais pequenas e nós estamos preparados para essa mudança”, afirma.
Texto e fotos: Milene Câmara
Data de introdução: 2010-06-10