No dia em que iniciava o seu segundo mandato à frente do Comissariado da ONU para os Refugiados, o português António Guterres afirmou que o século XXI seria o século dos homens em fuga. O Alto Comissário tinha em conta a experiência recolhida ao longo de quatro anos, e ainda a realidade presente, face a um fenómeno que tem estado em crescimento contínuo. Quando fez esta afirmação, Guterres teve ainda o cuidado de lembrar que o problema não é exclusivo do continente africano.
Ora, precisamente nesse dia, o mundo tomava conhecimento da eclosão de mais um êxodo. Centenas de milhares de pessoas eram obrigadas a deixar a sua terra, as suas famílias e os seus bens para fugir à violência, às pilhagens, às violações e à morte. Esta nova tragédia estava a acontecer num país da Ásia Central, o Quirguistão, e as grandes vítimas eram os uzbeques residentes neste país.
De repente, o Quirguistão passou a ser conhecido pela opinião pública ocidental, mas pelas piores razões. Anexado pela Rússia dos czares no final do século XIX, tornou-se membro da URSS, em 1936. Em 1999, aquando do processo de desagregação do império soviético, alcançou a sua independência. O novo estado tinha, no entanto, uma composição demográfica que podia ser, a prazo, uma espécie de bomba relógio: uma composição étnica diversificada, em que dominavam ao quirguises, a etnia maioritária, e que lhe deram o seu nome. O segundo grupo era constituído pelos uzbeques, uma comunidade com ligações afectivas e históricas aos irmãos que vivem no estado vizinho do Uzbequistão. Daí que o referido êxodo tenha como destino este país que, temeroso da avalanche, começou a fechar as fronteiras à vaga de refugiados, ampliando assim a dimensão desta nova catástrofe humanitária.
A pluralidade étnica e cultural pode ser, e muitas vezes é, uma enorme riqueza para um país, mas constitui, outras tantas vezes, uma ameaça perigosa è sua estabilidade social e política. Veja-se o que está a acontecer na Bélgica, embora neste caso sem a dimensão e as ameaças que caracterizam os chamados problemas étnicos que caracterizam algumas regiões do mundo. No Quirguistão, tudo começou com uma crise política decorrente da demissão forçada do seu presidente, alguns meses atrás. Não se tratou de uma crise despoletada por razões de carácter étnico, mas as tensões políticas que se foram avolumando, desde então, fizeram vir ao de cima as diferenças étnicas.
Em tempo de crise, há sempre que encontrar bodes expiatórios, e os outros, os estranhos, são os mais fáceis de apontar. Em maioria, os quirzigues descarregaram sobre os uzbeques as suas raivas e frustrações, face à indefinição do poder.
Não sabemos se este século poderá vir a ser conhecido como o século dos refugiados, ou, como disse Guterres, como o século dos homens em fuga. Em 100 anos, muitas outras situações poderão ainda ocorrer, suficientemente importantes para dar nome a um século. Mas a tragédia continuada de milhões de seres humanos em fuga constituirá uma mancha que marcará para a história futura o retrato deste século. Se, entretanto, o mundo não acordar, definitivamente, para o problema dos refugiados.
António José da Silva
Data de introdução: 2010-07-17