OPINIÃO

Pega de cernelha

1 - Nas primeiras décadas do século passado, em Chicago, nos Estados Unidos, um célebre gangster, Al Capone, o sanguinário chefe da mafia, levava à sua conta, no currículo criminoso, dezenas de assassínios, muitos à sua ordem, muitos igualmente às suas próprias mãos.
Nunca, porém, a Polícia ou os Tribunais haviam logrado condená-lo por nenhum desses crimes; as vítimas, a quem fora tirada a vida, não podiam depor e as testemunhas que houvesse depressa passavam igualmente à categoria de vítimas, sendo eliminadas para impedir o seu depoimento e a consequente prova judicial dos crimes.
Toda a gente sabia, da Polícia aos magistrados e das autoridads civis à população em geral, que se tratava de um assassino sem escrúpulos – mas nunca em juízo se fez, quanto a esses crimes de sangue, qualquer prova.

(Não é, como se vê, só em Portugal que há criminosos, que o são verdadeiramente, por terem tido uma actuação materialmente criminosa, mas que o não são à face das leis, por a prova dessa sua actuação não ter sido judicialmente convincente.
Ou nem sequer foram levados a julgamento, por o processo ter morrido no inquérito.
A esse respeito, a situação dos factos trazidos ao nosso conhecimento, nos últimos anos, pela divulgação das escutas telefónicas, em vários processos mediáticos, como agora são chamados, é emblemática dessa impunidade: os factos ilícitos lá estão, confessados pelos autores e escarrapachados nos jornais, sabendo todos nós que ocorreram como vêm descritos; mas, como as escutas teriam sido realizadas sem os pressupostos legalmente definidos, não valem como meio de prova – e os processos são arquivados ou os seus autores absolvidos.
Mas os crimes ocorreram de verdade.)

2 – Al Capone acabou por ser condenado e preso, mas por um crime menor – um crime fiscal, de fuga aos impostos.
Foi esse o prémio de consolação das autoridades americanas: acabaram por ver o homem atrás das grades, mas apenas por uns trocados – não pelos crimes monstruosos que tinha cometido.
Não conseguiram apanhar o homem pelo grosso – só tiveram êxito pelo mais miúdo, pelo caminho mais fácil.
Foi uma espécie de pega de cernelha.
Nesta modalidade, em vez de se pegar o touro pelos cornos, de frente, chega-se-lhe de lado, pelo flanco.
Abandonando a metáfora taurina, ir de cernelha é o mesmo que ir de volta, entrar pelas traseiras, obliquar – e mais termos e expressões vocabulares haverá para assinalar este comportamento tão comum.
Ressalvadas as devidas proporções, é o que parece a actual novela entre a Federação Portuguesa de Futebol e o treinador da selecção nacional, Carlos Queirós, com o Governo à mistura – desta vez, bem, já que a Federação dispõe de poderes públicos, os dinheiros com que paga salários e mordomias das Arábias são igualmente públicos e as vergonhas que nos fazem passar afectam-nos a todos.

Não estamos, evidentemente, a falar de crimes, como o Al Capone.
Mas já estamos a falar em ir de volta, em pegar de lado, à cautela, em entrar pela porta de trás, como no símile com que começa esta crónica.
Carlos Queirós deveria evidentemente ter saído da selecção no dia a seguir ao último jogo da medíocre prestação da equipa portuguesa no Mundial da África do Sul.
Saído pelo seu pé.
Ou empurrado.
Pelo seu pé, não seria de esperar: é certo que o Professor – por extenso, cum laude -, após alguns anos em Inglaterra, procurou colar a si um ar de gentleman, com prosápia a condizer, que o distinguisse da restante gente vulgar do futebol.
Mas esses ares parece que não passaram para dentro – e para o comportamento.
Só empurrado, portanto.
Com justa causa e motivo atendível.

Uma selecção de craques, quase todos a jogar nas principais ligas estrangeiras e pagos a peso de ouro – e também nós, que pagamos ao treinador um dos salários mais altos do mundo das selecções – merecemos mais do que aquela equipa tristonha, encolhida e temerosa, que Carlos Queirós apresentou na África do Sul.
(E que continua fiel a si mesma e aos seus donos: escrevo no rescaldo dos 4-4 com Chipre, em Guimarães ...!)
Se, no rescaldo do Mundial, a FPF, à semelhança do que fizeram federações de outros países com treinadores que falharam, tivesse despedido o treinador, por inadaptação à função, assumindo frontalmente a miséria da campanha – e, de caminho, indo a Direcção da Federação junto com o treinador -, teria o aplauso do País.
A FPF preferiu, no entanto, ir de cernelha – e despedir na mesma o treinador, mas por uns delitos bem menores do que a péssima exibição da equipa nacional.

3 – Não é que, do que deles se sabe, esses delitos devessem ficar impunes.
Pelo contrário, as análises que Carlos Queirós mandou a brigada anti-doping fazer e os termos grosseiros que, a crer nos jornais, foram por si utilizados, merecem forte censura.
A propósito dessa grosseria, mal se entende, aliás, que o treinador se tenha refugiado, em sua defesa, na alegação de que essa é a linguagem vulgar no futebol.
Ele não quer fazer parte dessa vulgaridade.
Mas, na verdade, não basta viver uns anos em Inglaterra ou tirar um doutoramento em desporto para fazer um gentleman.

4 – Terminou a primeira fase do processo Casa Pia, com o Tribunal de 1ª Instância a considerar provados parte dos crimes que constavam da acusação e a condenar a penas de prisão seis dos arguidos.
Não quer isto dizer que essas condenações se venham a manter no final do julgamento.
O Tribunal da Relação, ou o Supremo Tribunal de Justiça ou o Tribunal Constitucional podem revogar, total ou parcialmente, a sentença agora proferida, ou mandar repetir o julgamento – julgamento que durou 8 anos!
Pode ainda verificar-se a prescrição – e é provável que tal suceda, como têm advertido vários responsáveis.
No entanto, neste momento, e com a reserva da precariedade da decisão agora tomada, os factos e os abusos podem considerer-se como tendo ocorrido.

É legítimo dizer-se que houve, portanto, vítimas.
Dificilmente se reparam, em qualquer situação, os danos sofridos pelas vítimas dos crimes, nomeadamente nos crimes contra as pessoas.
Mas será intolerável para elas – e para todos nós, solidários com as vítimas, como tem de ser – fazer acrescer aos danos que sofreram a impunidade de quem os provocou, por questões processuais ou por se ter deixado passar tempo a mais sem investigação ou decisão definitiva.
Sejam estes ou outros os responsáveis.
Também aqui, para voltar ao Al Capone, pode haver quem tenha ficado de fora, por falta de provas - devendo ter ficado de dentro, por ter praticado factos idênticos aos que o Tribunal, em relação a estes réus, deu como provados.
A falta de provas não apaga os factos, quando ocorreram.
Nem diminui o sofrimento das vítimas.

Henrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta

 

Data de introdução: 2010-09-08



















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