1 - Peço desculpa à Srª D. Agustina Bessa Luís por lhe roubar o título para assunto tão desviado, mas não encontro epígrafe que melhor caiba ao tom da crónica. Já não é a primeira vez, aliás, que títulos de romances seus são usurpados, com o mesmo sem propósito, como mote para glosa alheia.
Sem propósito, repito: o nosso “menino de ouro” não faz parte do leque dos “Meninos de Ouro” do romance homónimo de Agustina – embora pudesse ter dado uma boa personagem dele.
Mas vamos ao ponto – e ao princípio:
Nos últimos dias, o debate político parlamentar andou à volta da tributação dos dividendos que algumas grandes empresas, como a PT – sempre a PT no centro das polémicas dos negócios misturados com a política, ou melhor, com o poder -, resolveram pagar antecipadamente, ainda no ano corrente, aos respectivos accionistas, a fim de evitarem o aumento da tributação que sobre os dividendos vai incidir a partir de Janeiro de 2011, nos termos do Orçamento aprovado com a complacência do PSD.
O Partido Comunista apresentou uma proposta de lei, no sentido de os dividendos antecipados em 2010 serem tributados da mesma forma que o seriam em 2011, propósito em que teve a companhia do Bloco de Esquerda e ia tendo a dos deputados do PS.
PS que só não viabilizou a proposta do PC por o respectivo líder parlamentar, Francisco Assis, ter imposto aos deputados a posição, defendida pelo Governo, de não mudar a lei apenas para dar resposta a este oportunismo fiscal das grandes empresas.
A proposta do PC acabou por ser rejeitada no Parlamento, com os votos a favor do Partido proponente e do Bloco e com os votos em contrário do PS, do PSD e do CDS.
2 - É certo que, numa ocasião em que tantos sacrifícios são pedidos aos portugueses, com particular penosidade para os mais pobres, tem um certo ar de escândalo as grandes empresas tratarem de proteger os donos do dinheiro – do muito dinheiro -, atribuindo-lhes antecipadamente os lucros, enquanto a taxa destes é mais baixa, para pagarem menos em 2011 e assim serem poupados ao esforço colectivo para salvar o País da bancarrota.
Esse escândalo é maior ainda quando somos regularmente confrontados com as notícias de que as grandes empresas do Regime – Galp, EDP, PT, bancos – têm vindo a apresentar um enormíssimo crescimento nos lucros, maiores do que nos anos anteriores à crise – lucros obtidos à custa dos consumidores portugueses ou da protecção do Estado.
Enquanto o País se afunda, o grande capital, mesmo o doméstico, viceja.
Lucra sem mesura, à custa da pobreza dos portugueses.
Pior: como naquele filme do Alain Delon e da Romi Schneider, “A Piscina”, empurra uma e outra vez o País para o fundo, até ele não conseguir voltar à tona - para, à conta da especulação financeira sobre a dívida soberana – novo palavrão do economês reinante -, rapar os nossos recursos, e os das gerações futuras, até ao osso.
É justo, portanto, o clamor popular que exige que os especuladores - que não produzem, mas exploram -, sejam tratados com a mesma falta de escrúpulos com que tratam o País e os portugueses.
E, nesse clima, nada mais natural do que os deputados do PS, que vêem as sondagens a descer na mesma medida que sobem os juros nos mercados externos, quererem dar circo à plebe – já que lhe tiraram o pão.
3 - É, por isso, de saudar a forma como Francisco Assis lembrou umas regrinhas básicas das democracias: que o pacto social assenta na obediência e no cumprimento da lei, que se não inventam leis para resolver situações concretas, mas apenas para regular, de forma geral e abstracta, a vida colectiva para o futuro e de que as inovações das leis não devem pôr em causa as expectativas que os cidadãos tiverem constituído face ao quadro legal existente.
Não há situação, por mais excepcional que seja, que possa pôr em causa os alicerces, sempre precários, da construção democrática.
(E são os mesmos que persistem no ataque político e pessoal a Manuela Ferreira Leite, pela simples ironia da suspensão da democracia por seis meses …!)
Os senhores deputados do PS já tiveram 6 anos – 5 com maioria absoluta – para mudarem as leis e para introduzirem mais justiça fiscal na repartição dos encargos pela população.
Mais socialismo, em suma.
Mas já vem de longe, dos tempos dos Governos do Dr. Mário Soares, esse deslumbramento com o dinheiro e com os donos dele que faz com que deixe sempre um tom de falsete o nome de Socialista que o Partido traz adjectivo.
Andou bem o Dr. Francisco Assis, portanto, ao lembrar que o princípio da confiança, numa sociedade livre e democrática, onde não caiba o arbítrio, constitui uma pedra angular.
É por isso que admira os senhores deputados da maioria não se terem lembrado desse mesmo princípio da confiança e da salvaguarda das expectativas legítimas, quando se preparavam, sem lhes tremer a mão, para votar o fim do reembolso do IVA pelas obras que as Instituições Particulares de Solidariedade Social já tinham em curso ou contratadas, aumentando, sem recuo possível, os custos em mais 23% e podendo levar ao incumprimento ou à insolvência muitas dessas Instituições – e lançando ainda em miséria maior os seus utentes.
Foi preciso o clamor e a oposição geral a essa cizânia, oposição dirigida pela CNIS e que foi capaz de mobilizar todas as forças políticas parlamentares, com relevo para o PC, o CDS e o Bloco de Esquerda, para advertir a maioria dos maus caminhos por onde a ânsia de cobrança a conduzia.
Mas o episódio serve também para lembrar que os princípios democráticos, tão apropriadamente invocados numas circunstâncias, podem ser deixados logo na próxima esquina.
4 – O mesmo esquecimento desse princípio da confiança tem sucedido, por exemplo, com as pensões de reforma – que, nos últimos anos, já foram, elas próprias, objecto, por várias vezes, de reformas e que são um dos tópicos dos cortes orçamentais que constituem hoje o nosso calvário.
Todas essas reformas tiveram o mesmo sentido; aumento do período de descontos, aumento das contribuições – e, invariavelmente, diminuição das pensões e das condições de aposentação.
Ora, cabe perguntar se é legítimo um qualquer Governo, com mandato conferido apenas para 4 anos, poder alterar sozinho, e alterar radicalmente, um contrato que um beneficiário já celebrou há 35 ou 40 anos com o Estado – contrato esse que o particular sempre cumpriu com pontualidade, pagando ao longo de todo esse tempo as suas contribuições, o mesmo sucedendo com a sua entidade patronal.
E que, nessa medida, ao longo desse tempo lhe foi conferindo direitos e expectativas legítimas.
Que, num piscar de olhos, qualquer Governo, por ter gerido mal os nossos impostos, entende que pode desmantelar.
O princípio da confiança é, na verdade, muitas vezes, excessivas vezes, degradado no princípio da incerteza.
Ora, a incerteza é o melhor terreno para medrar o arbítrio.
E como nos faz falta quem prefira merecer, com lealdade, a nossa confiança, em vez de nos impor, com arrogância, o seu arbítrio.
HENRIQUE RODRIGUES - Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2010-12-13