1 - O Diário de Notícias de 2 de Janeiro informa que o Governo dos Estados Unidos da América pretende aceder aos dados biográficos e biométricos dos cidadãos portugueses constantes do Arquivo de Identificação Civil e Criminal, bem como a informação relativa a elementos de ADN existentes no Instituto Nacional de Medicina Legal, em Coimbra.
O pretexto é respeitável, naturalmente: trata-se da luta contra o terrorismo.
Mas a respeitabilidade dos pretextos não deve deixar de parte o dever da reflexão crítica.
Até porque diz mais a notícia do jornal: já está tudo acordado com o nosso Governo e vamos mandar ao FBI o que ele pedir.
Falta apenas a ratificação pela Assembleia da República para se iniciar, legalmente, o tráfego de informação pessoal, privada e reservada, para um país estrangeiro, que não pertence à União Europeia nem ao espaço Schengen.
(Digo “legalmente”, na medida em que não tenho ilusões quanto ao que já se passa, nessa matéria, à margem da lei.
Também não tenho grandes dúvidas de que o Bloco Central formado pelo PS e pelo PSD, com uma longa tradição de cumplicidade nas matérias de seu recíproco interesse - como se viu na viabilização do Orçamento de Estado para 2011 -, não deixará de corresponder, na votação parlamentar, à pretensão americana.)
Já que todos proclamam, do Presidente da República ao Governo, que temos de exportar mais, para diminuir o défice da balança de transacções com o exterior e para vencer a crise – à falta de melhor, exportamos informação, mesmo se reservada.
Falta saber quanto – e em que divisa - nos vão pagar por ela.
O jornal informa ainda que a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais se encontra a elaborar um parecer sobre essa pretensão, a fim de apoiar os deputados no debate que o Parlamento vai oportunamente levar a cabo.
(Espero que o Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e porta-voz do PS, Dr. João Tiago Silveira, responsável pelo processo legislativo dos diplomas saídos do Conselho de Ministros, não se esqueça do que aprendeu em casa sobre a natureza da protecção de dados pessoais como direito fundamental dos cidadãos – que estes podem defender mesmo contra o seu próprio Governo; por maioria de razão, contra um governo estrangeiro.)
A imprensa diz qualquer coisa mais, que como que ilumina de melhor ângulo esta questão: pelos vistos, os Estados Unidos tentaram, numa fase inicial, negociar este tráfico com a União Europeia em geral, como deveria ser, dada a natureza do assunto e as competências, em matéria de segurança comum, da mesma União.
Mas passaram a negociar directamente com os países mais cordatos - como o nosso - numa espécie de pesca à linha, quando perceberam que nunca o Parlamento Europeu validaria um tão nebuloso conúbio.
É que o Parlamento Europeu tem uma tradição de independência dos Governos que o nosso Parlamento Nacional não pode infelizmente exibir.
No que me diz respeito, ficaria muito mais tranquilo se a defesa dos meus direitos de cidadão português fosse assegurada por Rui Tavares, ou Miguel Portas, ou Carlos Coelho, ou Ana Gomes, em Estrasburgo, em vez dos deputados da nossa Assembleia, em Lisboa.
2 - Também há poucos dias, o Secretário de Estado da Saúde, Dr. Manuel Pizarro, a propósito das novas regras sobre o pagamento das taxas moderadoras nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, em vigor a partir do início do ano, defendia o cruzamento de dados entre o Ministério da Saúde e o da Segurança Social, de forma a que a prova da condição de recursos feita nos Serviços da Segurança Social para efeitos da concessão de prestações sociais – subsídio social de desemprego, abono de família, Rendimento Social de Inserção – pudesse ser utilizada pelos Serviços do Ministério da Saúde.
Claro que só mediante o consentimento dos visados – esclarecia o Secretário de Estado, quando confrontado por um jornalista quanto ao melindre do método de cruzamento de dados que se pretende utilizar.
Mas, se o interessado não consentir, o que sucede?
Terá de repetir, em plataforma electrónica, como agora é lei, os procedimentos que já foi obrigado a executar perante a Segurança Social?
Ou perde a isenção das taxas moderadoras, sendo atendido apenas se as pagar, mesmo que não tenha recursos para tanto?
(Mesmo que sejam só os 10% que não pediram a senha na Segurança Social, para acesso às prestações sociais, já serão 10% de poupança no Orçamento …!)
Também aqui o pretexto para o cruzamento de dados é aparentemente respeitável: encontramo-nos numa situação excepcional, na maior crise dos últimos 80 anos, como gosta de dizer o Primeiro-Ministro, pelo que se haverá de lhe dar resposta com medidas também elas excepcionais.
Seria o caso.
3 - Esta vertigem do Governo pela posse de informação que lhe não diz respeito não se fica, infelizmente, por estes dois episódios, antes percorre, como uma febre malsã, a generalidade da Administração.
O vasculho é aí verdadeiramente uma segunda natureza, como muito bem sabemos cá por casa.
O que perturba é que quase ninguém venha ao espaço público debater estas restrições às nossas liberdades civis e esse cerco orwelliano à nossa autonomia individual – mesmo estando a decorrer a campanha para as eleições para Presidente da República, onde se diria caber em primeira linha esta discussão.
No que pessoalmente me diz respeito, preferia ver discutidas na campanha as ameaças do poder político às minhas liberdades do que a extensão e a interpretação dos poderes presidenciais – que tem absorvido boa parte dela.
Por outro lado, alguma razão haverá para que as Constituições democráticas, mesmo quando admitam contracção da esfera dos direitos individuais em situações de excepção, nunca admitam que seja o próprio Governo a definir os pressupostos da ocorrência de tal excepção.
As democracias partem do saudável princípio de que os Governos são suspeitos e parciais no exercício do seu próprio poder – confiando a contrapesos institucionais a declaração da excepção e limitando-a normalmente a situações-limite, como a de guerra.
4 - Gostaria, na verdade, de ver o Presidente da República vetar esses dois ataques às liberdades, direitos e garantias dos cidadãos.
Creio, porém, que vou esperar em vão.
Nestas matérias mais sensíveis, estruturantes da democracia, o Presidente não nos deixa um modelo denso e vinculado de intervenção política.
O seu modo de exercício da função presidencial, na senda dos seus 10 anos de Governo, anda mais cerca da vertente tecnocrática, do voluntarismo da acção como fim em si, da ambição da eficiência e dos resultados; e menos dos procedimentos, das regras, dos pesos e contrapesos, que constituem o núcleo do sistema democrático – e que a seu tempo o levaram a classificá-los, de forma crispada, como forças de bloqueio.
(O que sugere todo um pensamento político.)
Como se sabe da teoria política, a democracia é principalmente caracterizada pelo respeito pelos procedimentos – mais do que pela substância das políticas.
O diabo, na verdade, está nos detalhes.
5 – Quase coincidentes no tempo com as nossas, houve no Brasil eleições presidenciais, tendo a Presidenta eleita tomado posse a 1 de Janeiro.
Dilma Rousseff foi uma guerrilheira contra a ditadura militar que dirigiu o Brasil de 1964 a 1985.
Esteve presa e foi torturada.
Tal não é, só por si, uma garantia.
Mas o amor da liberdade constitui um currículo honrado para a presidência de uma democracia.
Por Henrique Rodrigues – Presidente da Associação Ermesinde Cidade Aberta
Data de introdução: 2011-01-07