1 - Há quase 14 anos que, com o Padre José Maia e a Drª Goreti Moreira, mantenho um programa semanal numa rádio do Porto, aberto à participação do público, sobre direitos sociais – o “Porto de Abrigo”, iniciativa de uma instituição particular de solidariedade social da zona oriental da cidade do Porto, a Fundação FILOS.
No início de cada emissão, e para apresentação do Programa, o responsável pela realização faz passar algumas expressões que seleccionou, a partir do que, ao longo dos anos, fomos dizendo e que, em sua opinião, melhor resumem o modo de pensar e dizer de cada um dos participantes.
No que me diz respeito, o realizador do programa reproduz a seguinte pergunta, que terei formulado numa qualquer emissão e que, no seu entender, corresponde melhor ao tom geral das minhas intervenções semanais: “porque mentem os políticos?”
Penso que escolheu bem.
Na verdade, um dos eixos principais das minhas participações no “Porto de Abrigo” tem-se desenvolvido à volta das incoerências e contradições entre o discurso e a prática dos responsáveis políticos – que são uma forma de mentira, na perspectiva de se destinarem a enganar, ou ludibriar, o povo eleitor – e também à volta da mentira propriamente dita – da mentira directa, descarada, sem mediação e com desfaçatez.
O mesmo tom tem marcado estas crónicas no “Solidariedade”, que também já levam cerca de 13 anos: escrevi aqui a minha primeira crónica em Maio de 1998.
Não se trata de nenhuma obsessão, mas de uma simples questão de higiene mental e cívica.
Vozes de louvor a quem manda já temos que chegue e que sobre, de quem é capaz de beber hoje, de olhos em alvo, qualquer palavra ou pensamento do chefe e de, amanhã, guardar como pérolas as opiniões desse dia que o mesmo chefe apresente, ainda que sejam o exacto oposto das opiniões da véspera.
2 – Uma das comédias de enganos em que nos têm entretido sucessivos Governos e partidos é a questão da regionalização política e administrativa do País.
Trata-se de uma obrigação constitucional.
Bem lembrou o Dr. Defensor Moura, na recente campanha eleitoral para a Presidência da República, que a passividade dos sucessivos Presidentes da República perante o dever constitucional de levar a cabo a regionalização administrativa do País constitui uma inconstitucionalidade por omissão, sendo assim exigível a todos os candidatos ter-nos informado do que pensavam sobre a forma como pretendiam cumprir a Constituição nessa matéria.
E andaram bem os deputados à Assembleia Constituinte, em 1976, quando aprovaram esse modelo de organização para o nosso País.
Tratava-se de construir um novo modelo de Estado, que fosse bem distinto do Estado de modelo autocrático a que tínhamos estado vergados durante quase 50 anos.
“Portugal é Lisboa, o resto é paisagem” – era já o retrato que se fazia nos finais do século XIX e que não mudou até hoje.
Bem pelo contrário.
Sendo um dos males do País o centralismo atávico da nossa organização política – segundo Antero de Quental, uma das principais causas do nosso atraso, como escreveu nas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” -, quiseram os Constituintes um Estado diferente, baseado na rarefacção do Poder Central e na devolução de poderes à periferia:
- às Ilhas Adjacentes, como aprendemos na escola que se chamavam, com Governadores nomeados por Lisboa, sucederam as actuais Regiões Autónomas, com órgãos de Governo próprio e competências legislativas separadas ;
- às Câmaras Municipais, com Presidente e Vereadores nomeados pelo Ministro do Interior, sucedeu o Poder Local democrático, com eleição directa dos órgãos municipais;
- aos Distritos, com um Governador Civil representante do Poder Central nos respectivos territórios, deveriam suceder as Regiões Administrativas, também elas com órgãos de Governo próprio, directamente eleitos;
Previa ainda a Constituição, nesta matéria de partir do topo para a base, a consagração das Organizações de Moradores, nova figura territorial local, decorrente da explosão das formas de participação popular de base nos anos de 1974 e 1975.
3 – Deste programa e deste imperativo constitucional, muito ficou pelo caminho.
Desde logo, as organizações de moradores, cuja espontaneidade não tardou a ser encolhida nos moldes de leis formais e restritivas, que as fizeram definhar e, praticamente, desaparecer.
Mas também as Regiões Administrativas, que não há maneira de saírem do texto constitucional para a vida.
Também para a vida das pessoas, para a melhor vida das pessoas, já que é também disso que se trata quando se trata de uma reforma do Estado desta natureza.
PS e PSD, os partidos políticos que, à vez, nos têm governado, desde 1979 até hoje, não se esquecem de acolher o tema da regionalização nos respectivos programas partidários.
Nem sempre da mesma maneira, é certo, já que a posição vai variando.
Mas sempre com a preocupação de, em cada momento, defenderem posições opostas quanto a esta matéria.
De tal maneira que, se, numa certa ocasião, num dos dois partidos, se defender a regionalização do País, certamente que o outro partido, na mesma ocasião, a repudiará.
No ciclo político seguinte, será ao contrário e trocam-se os papéis.
Para não haver o risco de conjugação astral que faça o processo sair da prisão em que se encontra e perturbar o novo Tratado de Tordesilhas, em que esses dois partidos entre si repartem o País.
O “pote” – como agora lhe chamam – não é, nem tem sido, só para um.
4- Durante o Cavaquismo, em que a centralização – melhor, a personalização - do poder constituía o próprio fulcro e razão do seu exercício, a existência de regiões, fonte de autonomia e independência em relação à longa mão do Executivo, naturalmente não constava da lista.
Durante o Guterrismo, as forças políticas encontravam-se mais equilibradas: enquanto Guterres a defendia, o grosso do PS, bem como o PSD de Marcelo Rebelo de Sousa, repudiavam-na.
O insucesso do processo de criação das Regiões, no referendo que se levou a cabo em 1998, resultou da coligação negativa das forças dos dois principais partidos, mesmo contra a posição do líder do PS.
No Governo de Durão Barroso, o PS andava mais preocupado com as lutas internas pelo poder do que com coisas de fora.
Santana Lopes não teve tempo para contar para isto.
Sobra o tempo, que já vai longo, de José Sócrates, com 5 anos de maioria absoluta e um e meio em minoria.
Durante os primeiros 5 anos, Sócrates deixou a questão em seu sossego, como a Bela Adormecida da história infantil.
Esperou pelo susto eleitoral de 2009 para trazer o tema à baila, como quem promete que é desta.
Até ontem.
Agora, que vai a votos no Congresso do PS e no País, já foi decidido pelo estado-maior do Partido que o assunto continua o seu sono eterno.
Claro que, segundo José Sócrates, isto é feito “por bem”.
É por tanto a estimar que o líder do PS a quer deixar quieta - temeroso de que a estraguem, se a levar ao programa do Partido como prioridade, e depois a referendo.
(Também D. João I disse a D. Filipa de Lencastre, quando foi por ela apanhado a beijar uma dama do paço, que era “por bem”. Mas a Rainha não deixou de mandar pintar, no tecto da sala onde ocorreu o episódio, no Palácio da Vila, em Sintra, um conjunto de pegas segurando no bico uma faixa com a expressão “por bem”, em memória da tentativa de logro. Ainda lá está.)
José Sócrates defende, como diz, a regionalização – mas deixou-a de lado durante os 5 anos de maioria absoluta e agora, que a deixou espreitar à janela, vai voltar a mandá-la para dentro, para que ninguém a cobice.
Isto é assim, por ele ser a favor.
Imaginemos o que lhe faria, se fosse contra?!
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2011-03-04