Hora de ir para o recreio! A correria pelas escadas abaixo muitas das vezes era desenfreada, em jeito de corrida... As irmãs (como a Maria dos Anjos ou a Virgínia), por vezes, tinham dificuldade em conter a excitação dos petizes em idade pré-escolar. Muitos usavam os corrimãos das escadas dos dois andares para neles escorregarem e assim ultrapassarem os demais. Eram os mais destemidos e a hora era de brincar… E era verdadeiramente delicioso e suave! Hoje, o corrimão principal foi elevado cerca de um metro – impossível de um garoto alcançar – e as crianças descem as escadas em fila indiana, a cantar, agarrados a um novo corrimão do lado da parede, que não dá para escorregar…
Lá fora, o recreio, coberto por lajes de pedra, onde muitos joelhos se esmurraram e algumas cabeças ganharam galos, tem agora um parque infantil no centro, adequado às exigências de segurança vigentes e, por certo, muito interessante, pela diversidade de divertimentos que oferece, para os pequeninos rapazes e raparigas que no presente ali se iniciam na arte da sociabilização e da educação.
De resto, na altura como agora, e apesar de o edifício, sendo o mesmo, sempre ter conseguido corresponder às necessidades, a grande virtude do serviço de apoio à infância do Centro Paroquial de Assistência e Formação «D. Manuel Trindade Salgueiro» sempre foi, pela experiência dos que por lá passaram, o calor humano dos seus profissionais. Quatro décadas volvidas, é possível confirmá-lo.
Remonta ao ano de 1966 a inauguração do Centro Paroquial de Assistência e Formação «D. Manuel Trindade Salgueiro», com a pompa e a circunstância que a época requeria, com as presenças do ministro das Obras Públicas, do Director-Geral da Assistência, do Governador Civil de Aveiro, do edil de Ílhavo e de dois Bispos, que no mesmo dia deram ainda a bênção ao Lar de S. José, propriedade da outra instituição da Paróquia, que apenas ganhou personalidade jurídica em 19 de Dezembro de 1959, mas anteriormente idealizado, regulamentado e autorizado «pela autoridade eclesiástica», o «Património dos Pobres de Ílhavo», no seio do qual haveria de nascer ainda a Obra da Criança (em finais dos anos de 1970), para acolhimento de órfãos e crianças e jovens em exclusão, e, mais recentemente, o Lar do Divino Salvador (em 1998), para valimento a mulheres vítimas de violência doméstica, mães solteiras e outras em situações problemáticas.
Dois em um de sucesso
«Mediante iniciativa da Fábrica da Igreja Paroquial do Divino Salvador de Ílhavo, autorizada pelo respectivo Ordinário, é criado nos termos do artigo 454.º do Código Administrativo, aplicável por efeito do disposto na Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português, o Centro Paroquial de Assistência e Formação ‘D. Manuel Trindade Salgueiro’, da Paróquia de Ílhavo, instituto de assistência material, educativa e moral aos que, na Paróquia, dela necessitem, quaisquer que sejam as suas crenças religiosas», pode ler-se no artigo 1.º dos estatutos fundadores da instituição, datados de 15 de Setembro de 1956, assinados pelo padre Júlio Tavares Rebimbas, e publicados em Diário da República 14 dias depois. Uma década volvida, o padre signatário era já Bispo do Algarve (chegou a arcebispo e terminou o seu bispado no Porto), tendo nessa condição marcado presença na inauguração oficial, depois de como prior de Ílhavo ter sido o prior responsável pelo início da construção do Centro Paroquial, em 1961, e do Lar de S. José, no ano seguinte.
Nascia assim, do seio da Igreja Católica, mais uma instituição que durante muitos anos foi a única resposta à infância e juventude em Ílhavo, mas não só... Nos seus estatutos fundadores, o Centro Paroquial propunha-se ir de encontro às aspirações da comunidade com valências que iam do lactário, creche, jardim-de-infância, escola infantil, patronato para rapazes e raparigas, centro de aprendizagem profissional para rapazes e um de formação familiar e doméstica para raparigas (outros tempos!), até secções de assistência a inválidos ou maiores indigentes sem meio familiar, de assistência médico-infantil e ainda de assistência à família.
“Na altura estas foram as dificuldades encontradas e as respostas iam de algum modo colmatar as lacunas existentes na sociedade de Ílhavo. A do Centro Paroquial, concretamente, de formação e promoção social das pessoas”, conta o padre João Gonçalves, desde Outubro à frente da Paróquia e por inerência presidente das duas instituições criadas nos anos de 1950, acrescentando: “Até o próprio título deste Centro vem de encontro àquilo que era uma coisa importante na altura: a pobreza… Quando se falava de pobres há 50 anos era uma coisa bem diferente da de hoje, se bem que vai sendo outra vez preocupante, mas era um conceito diferente. E aqui em Ílhavo havia muitas famílias muito pobres, pois como zona piscatória, cujo viver das pessoas estava dependente do mar, tinha muitas necessidades e muitas carências, como agora também há, mas nessa altura, se calhar, era mais visível. E as respostas estatais nessa altura eram nulas. Então, o D. Júlio Tavares Rebimbas, juntamente com as pessoas que agregou a si, tentou dar algumas respostas de acolhimento e ajuda às famílias carenciadas da comunidade ilhavense”.
Foi sob esse desígnio que a primeira obra do Património dos Pobres de Ílhavo foi a construção de um bairro para famílias desfavorecidas, situado na Rua da Cancelas, e ainda hoje conhecido como o «Bairro dos Pobres». Hoje, entre este e um outro situado na Rua do Casal, a instituição proporciona duas dezenas de tectos a outras tantas famílias carenciadas.
Pioneirismo
Em paralelo, e sob a tutela da Paróquia, o Património dos Pobres de Ílhavo e o Centro Paroquial de Assistência e Formação «D. Manuel Trindade Salgueiro» iniciavam na década de 1960 algumas respostas sociais até aí inexistentes na comunidade ilhavense, como frisa o padre João Gonçalves: “Quando estas obras começaram não havia outras, agora já há e ainda bem, e tudo convergia para aqui. Por exemplo, o salão paroquial era um espaço utilizado por toda a comunidade, porque era a sala maior que havia em Ílhavo”.
E assim foi durante décadas, com a virtude, relevada pelo presidente das duas instituições, da “qualidade dos serviços prestados, da centralidade e da antiguidade” como principais garantias dos anseios da população.
Relativamente ao Centro Paroquial, que no seu arranque contou com a prestimosa colaboração das irmãs da Congregação do Amor de Deus, nos dias que correm tem 46 crianças em Creche, 12 das quais em berçário, e 54 em Jardim-de-infância, funcionando com um total de 22 funcionários, cuja coordenação pedagógica está a cargo de Nádia Reis Dias. Como muitas outras instituições deste País, também esta encerrou a valência de ATL, quando o Governo alargou o período escolar.
Por seu turno, o Património dos Pobres de Ílhavo, impulsionado pelas necessidades de uma terra com grandes carências, para além das habitações construídas, abriu, em 1966, o Lar de S. José, uma obra que contou com o imprescindível contributo da benemérita ilhavense Celeste Maria dos Santos, que deixou à instituição um importante legado e cujo acto está perpetuado numa placa à entrada do edifício.
Aliás, o padre João Gonçalves realça o espírito benemérito dos ilhavenses, dizendo que “há muitas pessoas que deixam o seu património construído ao Património dos Pobres, seja a casinha ou outros bens, que são respostas muito interessantes da dedicação e concretização do amor e carinho que as pessoas têm pelas obras sociais”.
No Lar de S. José, que em 2008 inaugurou uma ala totalmente nova – “que não contou com qualquer comparticipação do Estado” –, estão 60 idosos a viver, apoiados por 35 funcionários, uma média de 50 voluntários e ainda seis irmãs do Amor de Deus. A instituição tem ainda uma valência de Centro de Dia, com 12 utentes, mas que “não está protocolada”, como explica o coordenador Luís Oliveira.
Por aqui passa um dos projectos futuros do Património dos Pobres, que pretende, agora, remodelar as instalações mais antigas, que têm 44 anos, e que já não se adequam às exigências do século XXI, pois eram divididas, essencialmente, em camaratas, o que hoje é desajustado das normas.
Obra da Criança
No correr da História, cerca de uma década depois da criação do Património dos Pobres de Ílhavo, nasce a Obra da Criança, que se instala em Cimo de Vila, num edifício que servira de Asilo do Hospital da Misericórdia de Ílhavo, e que ainda hoje é conhecido por todos os que por lá passaram como a «Casa Grande», e definitivamente abandonada pela instituição em Junho de 2010.
Pelo meio, em 1978, também na zona do Casal, são edificadas as primeiras instalações de raiz para – como refere o padre João Gonçalves – “dar resposta a crianças de famílias pobres”. Edifícios de apoio e a primeira casa de acolhimento são erigidos em 1978, para três anos passados ser construída a segunda casa, num conglomerado que inclui ainda um pequeno parque desportivo e terreno para cultivo, que os próprios jovens tratam.
“A necessidade de construção destas duas casas surgiu porque, albergando crianças e jovens dos dois sexos, colocava-se a questão de uma certa promiscuidade e esta foi a solução encontrada”, explica o coordenador da Obra da Criança, João Paulo.
Também aqui o Património dos Pobres quer desenvolver a resposta, pelo que, como diz o presidente da instituição, estar a ser equacionada, “com alguma urgência, a criação de novas instalações para proporcionar ainda melhores condições aos jovens”.
Actualmente, são 30 os residentes (16 rapazes e 14 raparigas), do 1 aos 19 anos da Obra da Criança, onde um jovem de 21 anos a frequentar o curso de Comércio Internacional, na Universidade do Porto, e ainda três jovens fora do acordo com a Segurança Social são excepções. Dezoito funcionários e cinco técnicos, que contam ainda com a ajuda de três irmãs Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora zelam por uma melhor qualidade de vida dos jovens.
Com o ocaso do século XX, mais concretamente em 28 de Março de 1998, foi inaugurado o Lar do Divino Salvador, que acolhe 12 mães, no momento entre os 15 e os 41 anos, que têm consigo 16 filhos menores.
“No tempo em que D. António Marcelino era Bispo de Aveiro começaram a surgir muitos casos de prostituição e mães solteiras aqui na região de Aveiro”, conta o padre João Gonçalves acerca das motivações que levaram a criar esta valência: “Começou por ser uma preocupação diocesana e depois, com a vinda de irmãs religiosas do Bom Pastor, especialistas na sua tradição de acolher mães solteiras e menores, conseguiu-se criar o Lar. Primeiro instalou-se numa casa alugada e, entretanto, com a construção de um edifício de raiz, tem instalações próprias”.
Dirigido pela Irmã Nazaré, o Lar conta com mais nove funcionárias (uma delas também religiosa) e com o apoio de mais quatro irmãs do Bom Pastor.
Apesar de reconhecer estar há pouco tempo em Ílhavo, o padre João Gonçalves considera que a cidade “seria muito diferente” sem estas duas instituições, justificando o que diz com a sua percepção, até por experiências anteriores, de que “as pessoas têm estas coisas como suas e isto é uma boa novidade”.
“Aqui em Ílhavo as obras sociais são mesmo tomadas e assumidas pelos paroquianos. Todos os meses há uma campanha que reúne cerca de duas centenas de pessoas para angariação de fundos para o Lar de S. José. As pessoas têm um carinho muito grande pela Obra da Criança, que foi apadrinhada pelo Rotary Club de Ílhavo, com uma acção de comparticipações directas que tem sido algo extraordinário”.
Em Maio próximo, o Rotary Club vai organizar, pelo segundo ano consecutivo, uma prova de BTT, cujos fundos revertem totalmente para a instituição.
Com mais de meio século de acção social solidária, por iniciativa da Fábrica da Igreja Paroquial do Divino Salvador de Ílhavo, com o mecenato de muitos ilhavenses, que ao longo dos anos têm doado o seu património, e o impulso determinante do, que viria a ser, Arcebispo D. Júlio Tavares Rebimbas, enquanto prior de Ílhavo, a hoje cidade tem no Património dos Pobres de Ílhavo e no Centro Paroquial de Assistência e Formação «D. Manuel Trindade Salgueiro» um «dois em um» pioneiro (ao seu tempo) e de forte intervenção social junto dos excluídos, mas não só, que continua a melhorar a vida da comunidade dos Ílhavos.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
Data de introdução: 2011-04-09