OPINIÃO

A Duquesa de Mântua

1 - Não havia intervenção pública do Dr. Álvaro Cunhal, como estarão ainda lembrados os meus leitores, que não invocasse e proclamasse os direitos e os interesses “da nossa pátria e do nosso povo.” Infelizmente, já não o temos entre nós – nem quem o substitua nessa invocação continuada da pátria como efeito retórico e como categoria política.
A ideia de pátria passou de moda – e é em vão que procuramos nos discursos de quem nos pastoreia apelos à nossa história de quase 9 séculos, às nossas marcas de identidade, à nossa autonomia e independência. Trata-se de uma ausência estranha.
Na verdade, em alturas de crise profunda, como a que vivemos, que nos tem conduzido a um profundo retrocesso – em qualidade de vida, em rendimentos, em trabalho, em perspectivas airosas para a gente nova -, em suma, em tempos de escassez material, em que nos parece fugir por entre os dedos qualquer coisa a que nos agarremos com esperança, é preciso empunharmos pelo menos uma ideia, um ideal que nos seja comum, a todos os portugueses, e que nos sirva de bandeira para a frente de combate – e para vencer esta crise que tarda em desoprimir-nos o peito. A pátria servia.
(Hoje, o que temos de aproximado é apenas um simulacro pífio desse ideal, de que o emblema da bandeira vermelha e verde, colocada nas lapelas dos casacos dos governantes e deputados, como se fosse uma camélia, numa moda importada da América de Bush e da França conservadora, constitui a caricatura.)
Houve tempos em que, para além do Partido Comunista, também o CDS evocava a história de Portugal e a nossa multissecular autonomia para alicerçar as suas convicções eurocépticas, remetendo, deste modo, para ambos os extremos do espectro partidário a persistência dessa ideia antiga da independência pátria. “Pelo pão/ e pela paz/ e pela nossa terra/ … Independência nacional”, como cantava o refrão do José Mário Branco, nos idos de Abril.
Mas veio o acesso ao poder e ao pragmatismo que o acompanha – e breve o CDS acabou a engrossar a amálgama e o indiferentismo do grande bloco central, onde as ideias variam e valem pouco e as tácticas absorvem todos os princípios.

2 – Por outro lado, muitos dos actuais lideres políticos pertencem a uma geração que já estudou história pelos manuais que, desde há décadas, vêm marcando e perpetuando alegremente a ignorância.
Não puderam decorar, como eu decorei, no meu tempo, as linhas do caminho-de-ferro – embora suspeite que, com o ritmo com que CP e a REFER as vêm encerrando, qualquer dia já o seu estudo pode voltar aos livros do liceu. Quando só sobrar uma.
Nem puderam conhecer os nomes, os percursos e os afluentes dos rios que nos fazem a paisagem tão diversa. Estudar e decorar as datas, ainda pior – só serviriam para encher de conhecimentos inúteis as louras cabecinhas. Creio que é também por isso que se acabou com tanta naturalidade com o feriado do 1º de Dezembro.
Talvez não soubessem que com ele se comemora a Restauração da Independência, em 1640, quando pela segunda e última vez nos libertamos do jugo espanhol. Não teria sido dada na escola essa matéria …
É certo que Portugal, entre 1580 e 1640, não perdeu formalmente a sua independência, do ponto de vista jurídico-constitucional. Tratou-se de uma união real, em que o Rei de Portugal era também o Rei de Espanha - primeiro, Filipe I de Portugal, depois Filipe II e, finalmente, Filipe III – mas os dois reinos se mantiveram separados. Não houve uma integração de Portugal em Espanha, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com Aragão e a Catalunha, que perderam pela mesma altura a sua independência. O Rei vivia em Madrid, no entanto, pelo que nomeava um vice-rei que, em seu nome e segundo as suas instruções, o representava no nosso País e, em seu nome, governava Portugal.
Não é coisa diferente do que a Alemanha pretendia fazer à Grécia – e, de caminho, a Portugal, parente dos gregos no carácter periférico, pobre e falido.
Segundo a proposta alemã que, por estes dias, se discutia na União Europeia, a Grécia bem poderia manter um governo a fazer que governava e um parlamento a fingir que legislava.
Mas quem verdadeiramente mandaria seria um vice-rei residente, um controleiro enviado para Atenas por Bruxelas, que poderia vetar quaisquer medidas tomadas pelos órgãos de poder na Grécia e que teria poderes para lhes definir orientações. Como a Duquesa de Mântua, vice-raínha de Portugal sob Filipe III e que exercia o cargo em 1640, quando os conjurados lhe perguntaram se queria sair pela janela, já que se mostrava reticente a abandonar pela porta o Paço da Ribeira.

3 – Prefiro a explicação da ignorância sobre a Restauração da Independência, para justificar a abolição do feriado do 1º de Dezembro, do que pensar que se trata de programado – ou indiferente – apagamento dos símbolos da Pátria, num caminho inexorável para a diluição do nosso País no caldeirão europeu.
Para mais Europa, que é o que nos dizem, no bloco central, ser a saída para a crise em que penamos, numa vertigem federalista onde, pela amostra da falta de solidariedade no seio da Europa, nos espera o papel de lacaio.
A conjura dos 40 fidalgos que restauraram a Independência, em 1640, tem esse sentido de renovação da declaração da independência face a Castela, no século XII: o talento de um pequeno País da periferia, não só da Europa, como da Península, que a Geografia e a História pareciam empurrar para a união ibérica, mas que, apenas pela vontade dos seus habitantes, forjou uma identidade e uma nação e a manteve independente ao longo de quase 900 anos.
Os tempos de crise que vamos passando, se há coisa que nos ensinam, é que os egoísmos nacionais estão bem vivos na Europa – e que os interesses que prevalecem são sempre os dos mais fortes. O que recomenda reforço das independências nacionais, ao contrário do pretendido e proclamado aprofundamento da integração.
De modo que, se nos quiserem mandar outra vez um vice-rei, agora a mando de Berlim ou de Bruxelas, teremos com ele a cortesia que os fidalgos de 1640 tiveram com a Duquesa de Mântua, convidando-o a regressar à sua terra em santa paz.
Mas, a quem sacrificar os nossos interesses ao novo Império, faremos o que os mesmos conjurados fizeram a Miguel de Vasconcelos, Secretário do Governo da Duquesa – e sairão mesmo, como ele, pela janela.

Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2012-02-21



















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