1 - Os meus leitores que estudaram Camões no tempo próprio ainda se lembram certamente da Canção X, “Vinde cá, meu tão certo secretário”:
“Vinde cá, meu tão certo secretário
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo…”
Este tão seguro e certo “secretário” convocado pelo Poeta era, como refere o terceiro verso, o próprio papel em que desafogava as suas mágoas.
O papel constituía o seu secretário de confiança, o seu escrivão de puridade.
Em boa verdade, secretário é o que conhece os segredos: “a secretis”, como do latim desaguou na nossa língua, antes de o novo e desconjuntado Acordo Ortográfico eliminar da respectiva grafia, como uma rasoura parola, todos os vestígios da origem das palavras portuguesas.
Camões, que muito e por desvairadas partes viveu e penou - e por isso muito aprendeu -, sabia que os nossos segredos só ficam verdadeiramente guardados quando ditos apenas para dentro de nós próprios – ou para dentro do que mantemos no nosso controlo, como o papel em que escrevemos e que podemos guardar a recato.
Ele sabia – como nós também sabemos – que os segredos são matéria volátil, que buscam freneticamente a luz e a exposição, aproveitando cada pequena fissura ou insídia para fugir da blindagem que os comprime, abrindo em mil cores e direcções.
Por isso os nossos segredos não devem ser confiados a mais ninguém senão a nós próprios.
Segredos contados a outros são, como se sabe, segredos que voam, logo recontados.
(Como dos anjos dizia o Carlos de Oliveira: “Para que voem; ut volent; basta a sua essência aérea;”)
2 - Conhecer os segredos dos outros sempre foi uma ambição e uma tentação muito forte.
Quantos casamentos não vão sendo erodidos por dentro, pela razão de cada um dos cônjuges não querer deixar fora do seu controlo cada passo ou cada pensamento do outro e porfiar com persistência por confissões minuciosas?
E quantos pais se conformam em não deverem ser uma câmara de vigilância atrás de cada um dos passos dos seus filhos, quando estes percorrem em liberdade os trilhos que escolheram para as suas vidas?
Esta ambição malsã de conhecer os segredos dos outros conheceu, aliás, na nossa cultura ocidental, longos períodos sinistros, em que as confissões, verdadeiras ou falsas, eram extorquidas à força de polé ou de garrote, da roda ou das marcas a ferro e fogo – quer às mãos da Inquisição, quer do braço secular.
Práticas e finalidades ainda bem actuais em tantos pontos do globo!
Tudo para devassar e vasculhar os desvãos mais recônditos da alma, do pensamento ou das convicções dos penitentes ou dos prisioneiros.
(Serão porventura razões desse tipo para a confissão ser o sacramento mais mal amado).
3 – Mas, por outro lado, o segredo é a alma do negócio.
Não há, na verdade, nenhuma decisão importante neste mundo, da área política aos meandros empresariais, que não seja tomada em segredo, à puridade.
Pacheco Pereira, comentador lúcido da nossa vida pública, chegou já a escrever que, em nome desse princípio do segredo, ou do recato, no processo decisório das questões verdadeiramente importantes, quando o órgão competente para decidir é constituído por um numeroso grupo de individualidades, a decisão relevante nunca é tomada pelo próprio órgão competente, mas em “petit comité”, um núcleo duro dentro desse órgão, que garanta a confidencialidade e o segredo.
A multidão, escrevia ele, é incompatível com a manutenção do sigilo.
(Assim, por exemplo, quando estiver na altura de decidir o reforço da austeridade – que o Primeiro Ministro e o Ministro das Finanças, cada um no seu estilo, proclamam não estar na agenda, mas que todos sabemos que é como se estivesse, só faltando marcar a data dos novos cortes nos salários -, as medidas não vão ser decididas em Conselho de Ministros, que se vai limitar a assinar de cruz, depois de tudo decidido em grupo fechado.
Não era assim no tempo do anterior regime, em que a mão férrea de Salazar também cobria o Conselho de Ministros – a tal ponto que Fernando Pessoa, no célebre texto em defesa da Maçonaria, apontava as reuniões do Conselho de Ministros como um exemplo de reuniões secretas.)
O segredo é igualmente, como se sabe – agora que a Maçonaria passou do recato discreto dos templos para a vulgaridade das primeiras páginas dos jornais –, uma das pedras de toque dessas organizações esotéricas, em que a iniciação se faz também pela passagem por baixo da porta para o interior recatado dos templos.
Estranho, por isso, e por se tratar de um vício tão alheio aos próprios princípios constitutivos da Ordem, a coscuvilhice que os membros de uma loja mantiveram sobre – ao pouco que, por ora, se sabe – alguns mais ou menos ilustres personagens: o dono do Expresso e antigo primeiro ministro; um jornalista do Expresso, um outro do Público; e o mais que se verá, quando se abaterem as colunas.
E estranho, igualmente, o próprio facto prévio que o permitiu: o de esse avantajado grupo de maçons ter tomado, em tempo oportuno, os comandos dos serviços secretos do Estado Português.
Como perceber que um grupo que se revê numa tradição que vive do segredo e no segredo queira tomar conta de uma outra instituição que tem como finalidade a devassa?
É como um Távora ir para intendente da Polícia!
4 – As escutas na Presidência da República terão algum “link” – como agora se diz –, alguma ligação com esta espionagem de meia tigela do “Reino da Traulitânia”?
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2012-06-11