OPINIÃO

Concertação solidária?

1 - No debate da moção de censura ao Governo, apresentada pelo Partido Comunista e discutida no Parlamento no passado dia 25 de Junho, o líder parlamentar do PSD iniciou a sua intervenção, salientando os resultados obtidos pelo Governo na criação de um ambiente de consensos alargados e de paz social, necessário para levar de vencida o combate à crise em que andamos metidos – e referindo, como episódios emblemáticos desses resultados, o acordo obtido na concertação social, bem como idêntico acordo em matéria de “concertação solidária”.

Acompanhando o debate pela rádio, adivinhei o que o referido líder parlamentar logo explicitou como definição dessa inovação teórica do discurso político – a “concertação solidária”.

Tratava-se, como me pareceu evidente, de uma referência ao Protocolo de Cooperação para 2011-2012, assinado em Janeiro de 2012 pelo Governo e pelas Uniões representativas das Instituições Particulares de Solidariedade Social: a CNIS, a União das Misericórdias e a União das Mutualidades.

Tal Protocolo foi celebrado, aliás, no dia seguinte ao do acordo de concertação social, com os parceiros sociais, como o Primeiro-Ministro não se esqueceu de salientar na cerimónia da assinatura, que decorreu na própria Presidência do Conselho de Ministros.

Mas não se ficou por uma singela decifração dessa inovação semântica o Dr. Luís Montenegro: pelo contrário, prosseguiu a sua intervenção salientando o papel essencial das Instituições Particulares de Solidariedade Social na superação da situação geral de desânimo e pobreza em que Portugal se encontra, de que seria exemplo o Plano de Emergência Social e dando conta das expectativas do actual Governo quanto ao relevo e centralidade desse papel, quer, no plano mais imediato e pragmático, para sair da crise; quer, ao nível dos princípios, como estruturante das opções políticas de continuidade, vencida que seja a dita crise.

Não me parece desajustada a classificação ideológica e semântica atribuída ao Protocolo.

Mais do que isso:

Quando, como hoje acontece, a propósito de tudo e de nada, os dirigentes políticos se entretêm a debater, para cada política sectorial, aquilo a que, no seu jargão privativo, chamam “conceito estratégico”, não estaria fora de propósito que a “concertação solidária” fosse elevada à categoria de “conceito estratégico” para as políticas sociais, na perspectiva de associar os parceiros do sector à própria definição da generalidade das políticas sociais e rejeitando o papel, que muitos ainda pretendem assacar a tais parceiros, de meros executantes, ou subempreiteiros, como dizia o Pe. José Maia, meu vizinho do lado destas crónicas, de políticas desenhadas e decretadas por outros.

(Impregnação conceitual aliás ajustada ao discurso “economês” que vai fazendo alguma moda no seio das instituições de solidariedade, onde a “gestão estratégica” vai disseminando o seu discurso e inventando necessidades e empregos: com tanta “estratégia” já cá por dentro de casa, o novo “conceito estratégico” não só não faria mossa, como reforçaria o aggiornamento semântico que, em obediência ao diktat das modas, tem marcado algumas iniciativas do nosso Sector.)

2 – Porventura mais relevante do que a “inovação” – outra palavra na moda cá por casa! – do conceito de “concertação solidária”, constante da intervenção do líder parlamentar da maioria, o sinal que pretendo trazer à tona da crónica é o facto de o papel das instituições solidárias voltar a ocupar um lugar central no discurso político do Governo.

Não só quando fala dos assuntos do Sector – mas quando fala, nos grandes momentos institucionais da vida democrática, da situação e do Governo do País.

Nessa perspectiva, a ênfase que, na retórica parlamentar, lhe conferiu o Dr. Luís Montenegro inscreve-se na mesma linha do “contrato de confiança” que, por várias vezes, o Primeiro-Ministro tem referido querer que o Estado celebre com o mundo da solidariedade.

Esta linguagem, e este discurso, pretendem marcar uma ruptura com a crispação que caracterizou, nos anos mais recentes, por responsabilidade e arrogância do Estado, as relações com a representação institucional do mundo solidário.

E retoma uma tradição e um discurso sobre a cooperação e a confiança que marcaram com grande nitidez as políticas dos Governos do Engº António Guterres e que foram interrompidos até à presente legislatura.

3 - É certo que esse Governo se reconhecia na chamada esquerda moderna e que o actual se declina numa conjugação de centro-direita.

Enquanto para Guterres o bom Governo seria o que combinasse, nas doses certas, o liberalismo no funcionamento do sistema político com uma perspectiva “conservadora” em matéria de costumes e com uma regulação de matriz social-democrata no mundo da economia e do trabalho, o actual Governo afirma pretender estender o manto liberal sobre todo o funcionamento da sociedade e do Estado.

Não é o tema da crónica de hoje a desregulação constante das alterações promulgadas pelo Presidente da República, na passada semana, no que se refere à legislação do trabalho, num processo de desconfiguração da Constituição laboral, nem a matéria de costumes, que pode vir a constituir um pólo de tensão no seio da coligação, entre um CDS mais próximo do guterrismo, neste domínio e um PSD refém do radicalismo discursivo provindo da respectiva juventude partidária, que hoje detém o comando do Partido.

A tais temas, mais ou menos fracturantes e de que já aqui tratei noutro tempo e a propósito de outros actores, voltarei a seu tempo.

O que pretendo por ora é relembrar o discurso político de António Guterres quanto ao funcionamento da sociedade e do Estado e recordar que se tratou do único Primeiro-Ministro a afirmar como sua ambição a vontade política de perder ele próprio poder, transferindo-o para outras instâncias.

Tratava-se então do início do processo da regionalização administrativa do País, que veio a terminar ingloriamente no referendo (referendo que, contrariamente ao do aborto ou dos tratados europeus, não teve quem insistisse em o repetir as vezes necessárias até o sim vencer.)

Esse discurso de despojamento de António Guterres tem aproximações óbvias com a afirmação do actual Executivo quanto à necessidade de políticas que diminuam o papel e a intervenção do Estado da vida das pessoas, da sociedade e das empresas (a ordem hierárquica é minha!).

Por mim, estou de acordo.

Mas não basta dizê-lo.

Perduram tiques de controleirismo e devassa, de má e recente memória, desde aprendizes de espiões a cruzamento de dados pessoais; e o afastamento do Estado das empresas tem-nas mantido em usufruto vitalício dos amigos e compadres, sem mais méritos do que essa cumplicidade.

Não pode o Estado começar a empreitada por se retirar, desde já, da protecção dos trabalhadores, que são a parte mais fraca.

E manter os morgadios para os mais fortes.

Mantendo-se, também, o feriado do 10 de Junho, para pregar as comendas no peito dos morgados de hoje, que não fizeram à Pátria serviço que se conheça ou recomende.

Estamos quase como no tempo do liberalismo oitocentista, sobre o qual dizia Almeida Garrett: “Foge, cão, que te fazem barão; mas para onde, se me fazem visconde.”


Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2012-07-09



















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