«Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/Quantos filhos em vão rezaram!», escreveu Fernando Pessoa na abertura do poema «Mar Português». Sendo certo que estas estrofes têm uma referência explícita aos Descobrimentos portugueses, pois «Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó mar!», também se podem bem aplicar à enorme amargura e dor que o mar causa às gentes que nele se aventuram diariamente na pesca. E foi no ido ano de 1923 que um dos poucos abastados da vila de Cezimbra (como naquela altura se escrevia), o armador José Joaquim da Luz Rumina, decidiu criar uma instituição que acolhesse os desamparados filhos dos homens, e eram muitos, que o vasto oceano guardava para si. Completam-se no próximo mês 89 anos sobre este gesto de cidadania activa.
“Em 1923, com o seu sentimento filantrópico, o senhor José Luís Rumina assume a responsabilidade de dar resposta a uma necessidade que era sentida na comunidade”, refere Florindo Paliotes, presidente da Direcção do hoje denominado Externato Santa Joana.
Mas até se chegar a esta denominação, muitas décadas passaram, muitas ondas se desvaneceram contra a Fortaleza de Sesimbra e por muitas vicissitudes passou a instituição.
Ainda hoje existe e faz parte da instituição o edifício da Quinta Vila Amália, actual centro da vila, que José Rumina lhe doou e onde foi fundada, a 22 de Novembro de 1923, a Escola de Beneficência, Protecção e Assistência a Órfãs de Cezimbra, onde estava já inscrito o objecto prioritário da instituição: cuidar das filhas órfãs de Sesimbra.
O benemérito entregou a Direcção da escola a um grupo de senhoras prestigiadas da vila, deixando lavrado em escritura que «enquanto o edifício e seus logradouros se mantiverem para os fins destinados os mesmos serão propriedade da instituição e no caso desta se dissolver passarão para os herdeiros directos e no caso de não os haver, os bens passarão para a Santa Casa da Misericórdia de Cezimbra».
O arranque da instituição deu-se com 33 meninas, já que os primeiros estatutos, que datam de 1929, especificavam que a instituição se destinava a acolher apenas crianças do sexo feminino, disposição alterada em 1938, permitindo, igualmente, a protecção a rapazes órfãos.
“Esta foi seguramente a primeira escola de Sesimbra para ambos os sexos”, refere Florindo Paliotes, recordando a preocupação dos fundadores em direcionar a sua atenção para as raparigas órfãs: “Em Sesimbra, no início do século XX, havia muitas crianças órfãs em consequência do grande número de acidentes que aconteciam no mar e que deixavam muitas crianças sem pai e sem sustento. E o grande problema eram as raparigas que não tinham orientação, nem escolar, nem familiar… E o objectivo era que as raparigas aprendessem essencialmente a cuidar da casa”.
Recorde-se que naqueles tempos poucas eram as mulheres que não se dedicavam em exclusivo à lide da casa e a cuidar dos filhos, que nestes meios eram sempre bastantes por casal.
“Depois muitas coisas aconteceram, como em 1960 em que a Câmara chamou a si a responsabilidade da instituição”, relembra o actual presidente.
Porém, quando a autarquia tomou conta da instituição mais não fez do que transformá-la em salão de festas e conferências, tendo a mesma servido ainda de sede local da Mocidade Portuguesa.
Assim, durante praticamente uma década a instituição não existiu como elemento de apoio às crianças da vila.
REINÍCIO DE ACTIVIDADE
Já em 1970, após algumas obras de beneficiação, a escola reabriu para a realização de uma experiência piloto a nível do Ensino Primário. O falhanço desta iniciativa levou a novo encerramento.
“A época era muito conturbada e só em 1975, com os alvores do 25 de Abril, é que se reinicia o grande movimento de recuperação da instituição… Nessa altura, o Externato abriu com 10 crianças”, recorda Florindo Paliotes.
Foi um grupo de sesimbrenses que se deslocou a Setúbal solicitando que os estatutos da instituição fossem alterados no sentido de poder funcionar como jardim-de-infância. E quando a instituição reabre portas, a 6 de Maio de 1975, fá-lo sob o nome de Associação Externato Santa Joana, deixando cair a «poeirenta» designação de Escola de Beneficência, Protecção e Assistência a Órfãs de Cezimbra. O novo nome foi sugerido pelo facto de, segundo a lenda, Santa Joana ter sido uma princesa beatificada em resultado do seu trabalho a favor dos pobres e por causas de apoio às crianças mais carenciadas.
É que apesar dos muitos anos passados, das diversas circunstâncias vividas e de já não ser tão numeroso o número de órfãos como na altura da fundação, a instituição mantém uma especial atenção sobre as crianças que por infelicidade da vida ficam sem pais.
“Em 1975 iniciou-se este projecto e em 1987 aprovaram-se os novos estatutos que se mantêm até hoje e que prevêem na sua filosofia a manutenção do apoio aos órfãos, dando corpo à vontade expressa pelo senhor Rumina”, esclarece Florindo Paliotes.
Entretanto, em 1984, a instituição inaugurou a valência de Creche, na Rua Cândido dos Reis, num edifício novo, adaptado para aquele fim, e onde instalou dois berçários.
Ao longo de quase nove décadas, o Externato Santa Joana foi evoluindo e das 33 meninas com que iniciou actividade em 1923, passando ainda pelas 10 crianças em 1975, foi crescendo e em 2005 acolhia 167, sendo que actualmente cuida de 197 petizes, divididos pelas valências de Creche (97) e Pré-escolar (100). Para dar assistência a estas quase duas centenas de petizes, a instituição tem um corpo de 42 funcionários.
SITUAÇÃO FINANCEIRA DRAMÁTICA
À semelhança de outros pontos do País, a população e as IPSS de Sesimbra atravessam também grandes dificuldades. Se durante muitos anos a pesca e a agricultura foram as principais e únicas actividades económicas da vila, nas últimas décadas, especialmente com a crise nas actividades marítimas, deu-se uma profunda alteração, com as actividades turísticas a ganharem peso na economia local.
“A determinada altura com a crise das pescas, a sociedade passou a praticar uma agricultura em sistema de subsistência ou artesanal e a pesca é agora, o que chamo, uma actividade de mar, mais virada para o turismo e o comércio”, refere Florindo Paliotes, que constata: “No momento, as grandes dificuldades de Sesimbra advêm desta transição das actividades piscatória e agrícola para o comércio e o turismo. Ora, com as dificuldades financeiras que vivemos, o sector terciário está em grandes dificuldades, essencialmente, o sector da restauração tem muitas limitações, pois vive essencialmente do turismo, que está em crise”.
E para o presidente do Externato esta situação tem um reflexo directo na vida da instituição: “Ora, há um número muito elevado de pessoas que tinham e que têm aqui os filhos e que, como os seus proveitos diminuíram muito, solicitam alteração na composição da mensalidade”.
Ou seja, com menos proveitos, as famílias ficam com menos capacidade para pagar, o que se reflecte nas contas da instituição. Daí que, Florindo Paliotes afirme que “a situação financeira do Externato é dramática”.
“Em Setembro, do ano lectivo 2011/2012, a totalidade da comparticipação familiar mensal era de 26600 euros e em Junho foi de 21230 euros… Estes números dão que pensar! Em 10 meses é uma diferença de 30 mil euros! Estamos a falar de um défice orçamental que neste momento é muito elevado, até porque assumimos compromissos com o banco que nos prestou o financiamento para as obras”, explica Florindo Paliotes, que frisa as facilidades criadas pela instituição bancária, que protelou para 2027 o início de pagamento dos juros. Para além disto, o presidente do Externato realça ainda que “as obras, na altura, também foram possíveis devido ao apoio da Câmara Municipal de Sesimbra”.
O projecto de ampliação do Externato é de 2005, com um custo previsto de 500 mil euros, mas “em 2010, quando terminou, o custo duplicou”, sublinha, esclarecendo: “Esta obra custou 1 100 000 euros, em que a comparticipação do PARES foi de 150 000 euros, a da Câmara 96 000 euros e o restante foi assumido pela instituição, daí o empréstimo bancário. Também apanhámos uma fase de transição legislativa, pelo que a realidade em 2009, quando a obra terminou, era totalmente distinta da de 2005”.
No sentido de aliviar as dificuldades da instituição, a Direcção tem avançado com algumas medidas, em que o rigor nos gastos é a prioritária.
“Rigor nos gastos e, neste momento, para além da alimentação e materiais de higiene, só se fazem outros gastos com minha autorização expressa. Armo-me aqui em ditador mas tem que ser… Estamos ainda a realizar algumas iniciativas de angariação de fundos, mas também esbarram nas dificuldades das famílias”, explica Florindo Paliotes, que deixa ainda um elogio aos funcionários do Externato, até porque as dificuldades em pagar o salário de Agosto foram grandes, sendo que pagamento do subsídio de férias foi adiado: “Independentemente dos esforços e dedicação das Direcções das IPSS, nada se faz sem a qualidade e sem a capacidade dos trabalhadores e quero publicamente prestar a minha homenagem e agradecimento aos funcionários desta casa”.
Por outro lado, a instituição tem um projecto em mente, mas continua adiado face às dificuldades económico-financeiras: “Temos ali um espaço de 110 metros quadrados onde deveríamos construir mais uma ala, mas precisávamos 500 mil euros, que não temos. Gostaríamos de transferir para aqui as duas respostas que temos na Rua Cândido dos Reis e temos ainda a necessidade de uma sala para o pessoal e de outro para os serviços administrativos que andam há 20 anos a viver em espaços provisórios”.
CONCORRÊNCIA DESLEAL NO PRÉ-ESCOLAR
Como instituição que se dedica à infância, o Externato Santa Joana vive momentos de grande dificuldade, não apenas pela situação económico-financeira do País e das famílias, mas também pelo que o seu presidente apelida de “concorrência desleal do sistema nacional de ensino” em relação ao pré-escolar. E Florindo Paliotes não centra culpas apenas no Estado.
“A questão que se coloca é que no concelho a resposta no pré-escolar até 2005, 2006 era para 730 crianças, sendo que 430 tinham resposta nas IPSS. Dessas 430, o Externato tinha 100 meninos. Se esta oferta passa de 730 para mil e tal, há aqui 300 meninos que são retirados às IPSS e que vão para o Público… Com todo o direito e com todo o respeito pelo sector público, o problema que se colocou foi a falta de visão estratégica, uma vez que havia resposta. Foram fazer investimentos quando já existia a resposta e não houve respeito pela capacidade instalada… E isto aplica-se ao Poder Local, mas também ao Ministério da Educação. Por outro lado, os mega-agrupamentos, do nosso ponto de vista, não vêm trazer benefícios nenhuns às crianças, por exemplo, de três anos que vão para um espaço com outras de 12 e 13 anos. O bem-estar das crianças não foi acautelado pelo Poder Central, nem pelo sistema nacional de ensino, nem pelos professores e muitas vezes nem pelos próprios pais”.
E esta é uma situação que pode ser invertida? Para Florindo Paliotes, “a solução passa pelo Poder Local assumir na sua totalidade a responsabilidade para com as IPSS”.
“As instituições de solidariedade são importantes enquanto apoios e respostas e, perante as dificuldades financeiras do Poder Local, os cortes que foram feitos naquilo que muitas vezes era dado como subsídios eventuais de apoios a pequenas obras e reparações traz problemas. Com a agravante de que para o ensino público todos nós temos que pagar impostos e o que está a acontecer neste momento é que os pais que têm os filhos no pré-escolar do sector solidário estão a pagar duas vezes, pois pagam, pelos impostos, os meninos que estão no público e pagam ainda as mensalidades nas IPSS”, defende.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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