1 - Tanto quanto a memória consente, passados tantos anos, tenho ainda nítida a lembrança da primeira vez que ouvi a canção de José Afonso, “Os Vampiros”, que fez por estes dias 50 anos que foi editada.
Foi no Verão, aí por 1965/1966, durante as férias, em casa dos meus avós, em Abragão, onde se reunia toda a família.
Creio que terá sido um tio meu que levou o disco – era um disco de 45 rotações e ouvia-se num gira-discos, aparelho que as novas gerações considerarão uma referência arqueológica - e, sendo eu então um jovem adolescente, ainda conservo um vago e saudoso perfume das vozes familiares que, acompanhando o ritual de colocar o disco no aparelho e de nele colocar cuidadosamente a agulha, para não o riscar, se lhe referiam como sendo uma canção que estava proibida, por razões “políticas”.
É, de acordo com a memória selectiva que a vida e o tempo nos vai depurando, a recordação mais antiga que trago comigo do embate com o universo cinzento e opressivo do anterior regime.
Confesso que, na altura, com 13 ou 14 anos, não percebia o porquê da proibição: não havia no texto referências políticas explícitas, não se falava de ditadura, nem da polícia política, nem da censura, nem da guerra em África, nem da pobreza.
Era-me mais clara a compreensão da censura e da proibição relativamente a uma outra canção – que não recordo agora se era da outra face do mesmo disco, ou de outro, mas da mesma época -, o “Menino do Bairro Negro”, em que a referência ao “menino sem condição/irmão de todos os nus” e ao Bairro Negro - “onde não há pão, não há sossego” - remetia directamente para o conjunto de interdições do regime que então vigorava no nosso País.
Mas “Os Vampiros”, onde a transgressão?
Tanto quanto me lembro, a letra era assim:
“No céu cinzento, sob o astro mudo
batendo as asas, pela noite calada
vêm em bandos, com pés de veludo
sugar o sangue fresco da manada.
Se alguém se engana com seu ar sisudo
e lhes franqueia as portas à chegada
eles comem tudo,
eles comem tudo
eles comem tudo e não deixam nada.
Eles comem tudo,
eles comem tudo
eles comem tudo e não deixam nada.
A toda a parte chegam os vampiros
pousam nos prédios, pousam nas calçadas
trazem no vente despojos antigos
mas nada os prende às vidas acabadas.
São os mordomos do universo todo
senhores à força, mandadores sem lei
enchem as tulhas, bebem vinho novo
dançam a ronda no pinhal do rei.
No chão do medo tombam os vencidos
ouvem-se os gritos na noite abafada
jazem nos fossos, vítimas de um credo
e não se esgota o sangue da manada.
Se alguém se engana com seu ar sisudo
e lhes franqueia as portas à chegada
eles comem tudo, eles comem tudo
eles comem tudo e não deixam nada.
Eles comem tudo,
eles comem tudo
eles comem tudo e não deixam nada."
2 – A cantiga lá estava guardada numa das gavetas da memória, em repouso, substituída que fora no uso por outras canções mais em voga.
Nos últimos tempos, do acervo de canções de José Afonso, a bem mais recente “Grândola, Vila Morena”, pela ligação simbólica que tem com o 25 de Abril e com o significado desse “dia inicial, inteiro e limpo”- como lhe chamou Sofia de Melo Breyner -, tem tido, na verdade, um uso e uma utilidade que àquelas primeiras canções a História não conferiu.
Mas a data redonda dos 50 anos da canção d’“Os Vampiros” trouxe-a de novo à actualidade dos dias que correm e à antiguidade das minhas lembranças.
E descobri nela uma linguagem e uma força que bem justificariam a sua entrada na nossa conturbada agenda política e social, com os virtuosos efeitos da sua irmã mais nova.
Com 13 e 14 anos não via na canção, como disse, aparência que merecesse a tesoura dos censores.
Mas o sentido dela na denúncia da exploração dos fracos pelos fortes, metáfora que pouco tempo depois intuí, tem uma ressonância fortíssima.
Pensemos se não deveríamos receber com ela a troika, cantando-a em coro de cada vez que essa pecadora trindade nos visita.
Vêm de avião, do “céu cinzento”, aparecem com “ar sisudo” e “com pés de veludo”, mansamente.
Outros até já cá estavam.
Têm cá dentro quem lhes franqueie as portas e os umbrais e os deixe pousar “nos prédios” e “nas calçadas”, nas nossas casas e nas nossas vidas.
E é até fartar: sugam-nos os salários e as pensões, os depósitos e as poupanças, os empregos e a honra – o nosso “sangue fresco”.
Que vão encher “as tulhas” dos novos senhores da Europa, da banca e do Reich, de quem “são mordomos” – e também, à nossa escala, dos nossos pequeninos bancos e banqueiros, das companhias do regime e dos seus donos.
E dançam, dançam, dançam …
Nada os prende aos restos e aos “despojos”, “às vidas acabadas”, que “jazem nos fossos”.
São como o Átila, deixando a devastação e o caos.
“Comem tudo” – mesmo tudo – “e não deixam nada”; mas, a cada nova avaliação, nunca “se esgota o sangue da manada”.
E a cada olhadela de lado e desdém pelas decisões do Tribunal Constitucional - do Português, porque do Alemão ninguém se atreve -, quando tenta limitar o arbítrio, não podemos deixar de pensar nos “mandadores sem lei”.
3 – Afinal, no fundo, não mudou muito nestes 50 anos.
Nós é que pensávamos que tinha mudado alguma coisa, em 40 anos de liberdades.
São os mesmos os vampiros e é a mesma a manada.
Só mudaram os mordomos.
Ainda não temos de olhar para o lado, antes do pôr o disco no gira-discos.
Mas já esteve mais longe…
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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