1 - “… Já gastámos as palavras./Quando agora digo: meu amor …,/já não se passa absolutamente nada./E no entanto, antes das palavras gastas,/tenho a certeza/de que todas as coisas estremeciam/só de murmurar o teu nome/no silêncio do meu coração.//Não temos já nada para dar./Dentro de ti/não há nada que me peça água./O passado é inútil como um trapo./E já te disse: as palavras estão gastas…”.
Regresso a Eugénio de Andrade - “Os Amantes sem Dinheiro” -, a propósito do tema do valor das palavras e da erosão do valor e do sentido delas, erosão normalmente provocada por um seu uso intensivo, que as banalize, ou por uma utilização desviada do seu conteúdo semântico típico, que as degrade.
A relação entre as palavras que nomeiam e as coisas que são por elas nomeadas constitui, de resto, um tema caro, não só à linguagem poética, mas igualmente à filosofia.
Há muito quem entenda, aliás, como se sabe, que as coisas só existem quando nomeadas, isto é, quando se lhes dá um nome – não existindo fora dessa nomeação.
Não há coisa sem nome agarrado.
Se pensarmos nas coisas imateriais, intangíveis – no amor, por exemplo, para de novo nos acolhermos no excerto do poema de Eugénio de Andrade -, perceberemos melhor essa evidência: a de que tais coisas são apenas o nome que lhes damos, com o conteúdo que as respectivas palavras adquiriram.
O amor – não, evidentemente enquanto emoção, ou estado de alma, mas enquanto conceito – não corresponde a uma realidade física, corpórea, não existe fora do nome que lhe é dado.
(Não podemos ir a uma montra e dizer: vejam ali o amor, como está barato!…)
Mas esse nome como que vai enfraquecendo no seu valor de nomeação, na sua intensidade, dizendo hoje menos, pela enunciação de uma palavra, do que a enunciação pretérita e inicial da mesma palavra.
Se, nuns momentos iniciais, todo o universo estremecia, incorporando-se ao autor só de ouvi-lo sussurrar para dentro de si a palavra amor, num momento posterior já a enunciação da mesma palavra não possuía força para convocar a cumplicidade da natureza com as emoções do poeta.
A palavra era a mesma – mas fora-se gastando, com o uso, erodindo-se a sua força de enunciação.
2 – Não creio que este registo lírico seja o mais adequado para enquadrar o que hoje me traz aos meus leitores – que todavia tem como tema a utilização das palavras, o seu uso e o seu abuso.
Servir-lhe-á, no entanto, de contraponto.
O tema vem a propósito de mais uma incursão pela novilíngua levada a cabo pelo Governo, desta vez pela mão inesperada do ministro Marques Guedes – que, não tendo chegado ao Governo vindo directamente das jotas nem dos blogues de contra-informação e tendo uma imagem a que associamos características de gravidade e sensatez dignas de um membro do Governo de Portugal, não víamos a repetir recados destes -, ao nomear as diligências que o Executivo iria levar a cabo para tornear o chumbo do Tribunal Constitucional ao diploma da impropriamente chamada “convergência” das pensões dos funcionários públicos aposentados com os reformados abrangidos pelo Regime Geral da Segurança Social.
Já aqui, nestas crónicas, tratei desse tema, tendo então defendido a inconstitucionalidade de tal “convergência”, por violação do princípio da confiança, merecendo especial censura, a meu ver, o facto de nela se ter proposto, pela primeira vez em democracia, eficácia retroactiva aos cortes decididos para as pensões já em pagamento, em 10% do seu valor bruto.
Como todos os constitucionalistas mais imparciais e de maior credibilidade tinham prenunciado, o Tribunal veio a acolher as razões daqueles que se opunham à consistência democrática e jurídica da medida, decretando a sua inconstitucionalidade.
Tratava-se de mais uma medida do elenco que vem sendo seguido, de colocar os funcionários públicos e os aposentados da Caixa Geral de Aposentações – e também, embora em menor escala, os reformados do Centro Nacional de Pensões – a pagar a parte mais substancial do processo do chamado “ajustamento”, através de cortes nos salários e pensões, num processo que vem já desde 2010.
Com o chumbo do Tribunal Constitucional, estima o Governo que deixará de cobrar dos aposentados do Estado cerca de 330 milhões de euros, a título da pretensa “convergência” – pelo que resolveu cobrar o mesmo valor, alargando o universo dos contribuintes aos quais tinha previsto aplicar a taxa da CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade), ela própria de duvidosa constitucionalidade, inicialmente prevista relativamente a pensões brutas acima de 1.350 euros e que parece ir aplicar-se, como explicou o ministro Marques Guedes, a todas as pensões, quer da CGA, quer do CNP, acima de 900 ou 1.000 euros.
3 – Isto é, os cortes nas pensões de aposentação e reforma vão aplicar-se a mais contribuintes, e titulares de pensões mais baixas, do que aqueles que estavam inicialmente previstos.
A estes novos cortes, para não lhes dar o nome que lhes cabe – a palavra verdadeira é “cortes” - chamou o ministro Marques Guedes recalibragem da CES.
Mas por más razões.
É certo que a palavra “cortes” tem tido muito uso nos tempos mais recentes.
Uso – e abuso.
Não só na nomeação – também nos efeitos práticos, na realidade material.
Mas ainda não perdeu a força enunciativa: não parece haver maneira de a palavra se gastar.
Pelo contrário: sucede que, relativamente a noções de conteúdo positivo – como o amor, a que acima me refiro -, a repetição do nome das coisas acaba por as banalizar, por lhes enfraquecer o sentido, por as gastar.
Mas tal já não acontece com noções de conteúdo negativo: como cortes em salários e pensões.
Aqui até se afigura que o efeito de reiteração – aliás adequado e conforme à persistência dos cortes em causa –, por reforçar a indignação das vítimas, aumentaria a eficácia da nomeação.
Não haveria o risco de, chamando-lhes o ministro cortes, os destinatários, os mesmos de sempre, não perceberem do que se trata.
Percebem, por experiência própria.
4 – Mas recalibragem não me parece semanticamente conforme à natureza da medida – foi vocábulo mal escolhido.
Recalibragem faço eu aos pneus do meu carro, quando estão descalibrados: isto é, quando uns pneus têm menos pressão do que outros.
Como sabem todos os condutores, a descalibragem afecta as condições de segurança da condução.
Costuma demorar a acontecer: quando atestamos de ar os pneus, eles mantêm-se calibrados durante algum tempo.
A CES estaria descalibrada?
Não é provável: essa Contribuição – ou essa taxa, ou imposto – consta do Orçamento de Estado para 2014, ainda fresco da aprovação três dias antes da “recalibragem”.
Não tivera tempo para descalibrar.
A razão da escolha de um vocábulo de substituição não se deveu, portanto, a uma dúvida legítima sobre a diluição semântica da palavra “cortes” – mas a uma tentativa de disfarçar uma medida desagradável debaixo de um nome falso.
Para “tromper l’oeil”, em suma.
Ao registo lírico de Eugénio de Andrade, prefiro, como mais apropriado a esta substituição de falsa sinonímia de “cortes” por “recalibragem”, o registo mais contundente de José Carlos Ary dos Santos, no poema “O Objecto”, do livro “Adereços, Endereços”:
“Há que dizer-se das coisas/o somenos que elas são./Se for um copo é um copo/se for um cão é um cão./Mas quando o copo se parte/e quando o cão faz ão ão?/Então o copo é um caco e um cão não passa de um cão…”
Para terminar, como o Poeta: Assim se chamam as coisas/pelos nomes que elas são.”
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2014-01-10