OPINIÃO

PANEM ET CIRCENSES

1 - Fiz a instrução primária na Escola do Carvalhal, em Ermesinde, uma das escolas construídas no âmbito do chamado Plano dos Centenários.
Este Plano, determinado pelo Governo de Salazar e que teve início em 1940, destinava-se a comemorar dois centenários: o tricentenário da Restauração, de 1640, a celebrar a expulsão da Dinastia dos Filipes; e os oito séculos da existência de Portugal como Estado independente, a partir de 1143 - data do Tratado de Zamora e que a historiografia então vigente considerava marcar a independência de Portugal relativamente ao Reino de Leão (“Chamamo-nos Portugal e nascemos há oito séculos”, como rezavam uns dísticos de conteúdo panegírico e patriótico que forravam as salas de aulas desses tempos já longínquos.)
Através das escolas construídas nessa fase – o Plano teve execução de 1940 a 1960, construindo-se em todo o País cerca de 7.000 novas escolas -, foi possível alargar a escolaridade obrigatória de 3 para 4 anos e dotar praticamente todas as freguesias de Portugal de instalações capazes para as crianças aprenderem as primeiras letras.
Claro que as comemorações de datas com significado simbólico e patriótico na vida das Nações são levadas a efeito em todas as latitudes e em todos os sistemas políticos – mas os regimes autoritários, as ditaduras, procuram normalmente dar um volume ou um sentido mais grandioso às comemorações que promovem.
É compreensível: desde sempre se sabe que as massas se controlam com pão e circo – panem et circenses, como escreveu Juvenal -, e as ditaduras, à míngua de motivos para festejar o presente, festejam o passado, procurando legitimar-se no sentimento dos povos como herdeiras das glórias de antanho.
Mas, já que se trata de comemorar, é mais bem gasto o dinheiro assim, construindo escolas – que ficam, servem e perduram, para finalidades nobres -, do que queimá-lo em foguetório ou fogo de artifício.

2 – Claro que não havia apenas essas comemorações, por assim dizer nacionais, que diziam respeito a toda a gente e não constituíam tema de fractura entre portugueses.
O Regime também festejava as suas datas próprias, as suas datas fundadoras, como o 28 de Maio de 1926, data da chamada Revolução Nacional, que levou primeiro os militares ao poder – que o entregaram, uns anos mais tarde, a Salazar.
Nas datas mais redondas, organizavam-se excursões, de camioneta, carreando gente de todo o País para o Terreiro do Paço, em Lisboa, para vitoriar o “Senhor Presidente do Conselho”, como era então tratado o Primeiro-Ministro.
(Ainda se faz o mesmo hoje, para encher os grandes comícios partidários ou levar os idosos a Fátima, por ocasião das diversas eleições.)
Pelo seu lado, a Oposição tinha também os seus rituais comemorativos, traduzidos, em regra, numa sessão, num jantar e numa romagem ao cemitério, sempre com a polícia fardada presente e a PIDE por perto.
Assim lembravam o Primeiro de Dezembro, nos Restauradores, em Lisboa, o 5 de Outubro e a Implantação da República, nas principais cidades, bem como, no Porto, o 31 de Janeiro, data da 1ª tentativa de instaurar o regime republicano, em 1891.

3
– Cumpre-nos agora, daqui a menos de dois meses, comemorar os 40 anos da Revolução do 25 de Abril.
Não vai por bom caminho o programa das festas.
Não sou daqueles que entendem que a Revolução e o seu legado constituem privilégio da esquerda e que só esta tem legitimidade para festejar a data.
O 25 de Abril, e a liberdade que nos trouxe, é para todos.
Mas quem nos governa de momento é a direita – e esta não tem feito muito para nos convencer de que é com o coração alvoroçado de alegria que organiza as comemorações.
É certo que quem manda agora no País é duma geração posterior à minha, não tendo, por simples razões de idade, a alegria e a memória de Abril a abrir-lhe o peito.
Nem a lembrança dos tempos de chumbo que, por mais de 40 anos, precederam a Revolução dos Cravos.
Vivemos “habitualmente”, como Salazar tinha por ambição para o País.
Não só nos partidos do Governo: na Oposição, do chamado arco da governabilidade, é a mesma coisa.
(Nem sei como vou resolver as dúvidas que tantas vezes me assaltam antes de votar, no sentido de escolher o melhor.
Até há pouco, tinha como critério de definição do voto que ele só iria para quem tivesse uma história de oposição ao anterior Regime.
Sempre era uma garantia …
Hoje, por tal critério, olho à volta – e falta-me esse arrimo.)

4 – Mas eu, e gente da minha idade, queremos festa – e fazer a festa - pelos 40 anos que levamos de liberdade.
De pobreza também, é claro, já que também disso são feitos estes anos.
(Mas a pobreza e o atraso custam menos a sofrer em liberdade do que em ditadura.)
Não podemos confundir o 25 de Abril com o 17 de Maio, logo a seguir, data em que acaba, no papel, a tutela da troika.
Não são programas de festas compatíveis, nem são os mesmos os festeiros.
Mas a austeridade, não a do “ajustamento”, mas como virtude civil, pode ser lembrada a propósito dos militares que fizeram o 25 de Abril e os civis que desempenharam funções públicas nos primeiros tempos de regime democrático.
Tive o privilégio de assistir, como aqui já disse, a algumas Sessões da Assembleia Constituinte, onde se sentava a mais esclarecida elite intelectual e cívica do nosso País: que modéstia de costumes e de gastos, que liberdade e autonomia de intervenção dos deputados, que parcimónia nas despesas públicas, que distância do espalhafato naif dos nossos dias …!
Bem sei que pode ser meu o defeito, com ideias antigas no que respeita às artes – e ao resto.
Mas não fico sem respiração nem se me abre de grandeza a alma ao ver um cacilheiro ir de Lisboa a Veneza ou ao deparar com um gigantesco par de sapatos, feitos de panelas de pressão, tidos como obras de arte.
E já me sucederam esses fenómenos e reacções ao ver alguns quadros, ouvir algumas músicas ou ler algum livro.
Já sei que a Presidente da Assembleia da República desistiu da encomenda à artista oficial do regime vigente, para esta “criar” uns cravos – li que de plástico -, para colocar na ponta do cano das chaimites, por umas dezenas de milhar de euros.
Não sei se por se dar conta, embora tardia, ou lho terem dito, quanto ao deslumbramento parolo que significava a encomenda, se por decisão da própria adjudicatária, que declarou não aceitar a empreitada sem a unanimidade da Pátria rendida aos seus pés.
Nem sei se a ideia da degradação dos cravos da nossa memória afectiva foi de Assunção Esteves – como faziam os príncipes mecenas do Renascimento – ou já integrava a concepção artística.
Mas sei, isso sim, de ciência certa, que tais cravos não cabem nas “portas que Abril abriu”.

Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2014-03-06



















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