SOLIDARIEDADE - Qual é o papel que desempenha a Conferência Episcopal?
D. JORGE ORTIGA - As conferências episcopais são essencialmente um orgão colegial no sentido de criar ou estimular o relacionamento afectivo entre todos os bispos e, simultaneamente, chegar também a uma colegialidade efectiva, ou seja, de resposta não uniforme, mas em unidade, aos problemas característicos do país. Cada bispo tem autonomia na sua diocese, mas num país como o nosso, onde apesar da pequena diversidade social, é de muita importância que os bispos se encontrem para, em comum, intuírem os caminhos que devem percorrer juntos.
SOLIDARIEDADE - Nos mandatos de D. José Policarpo houve uma certa mediatização dos vossos encontros. Como é que vai ser consigo a presidente?
D. JORGE ORTIGA - Eu não sei se houve esse esforço de mediatização. Não era costume a sessão de abertura ser aberta à comunicação social. Penso que se deve manter esse procedimento até porque é uma oportunidade de podermos dizer quais são os temas que iremos em conjunto abordar. Neste momento tenho algumas ideias sobre o modo como irão funcionar as assembleias e o funcionamento normal da Conferência Episcopal, que existe todos os dias e não só quando se reúne. Gostaria que tivéssemos um tema para estes três anos de mandato, subdividido em temas para cada uma das assembleias. Nas Conferências Episcopais devem ser adiantadas respostas que têm que ser comunicadas à população.
SOLIDARIEDADE - Já tem algum grande tema para sugerir?
D. JORGE ORTIGA - A minha grande preocupação é o fenómeno da indiferença e do agnosticismo que avança de forma evidente. Por isso, considero que temos que reflectir muito sobre a evangelização nesta sociedade plural e, porventura, indiferente através de aspectos muito concretos que dizem respeito a essa evangelização. Creio que essa será a linha de força a ser presente em todas as assembleias.
ACÇÃO SOCIAL E CARITATIVA DA IGREJA
SOLIDARIEDADE - Recentemente foi publicada pela Conferência Episcopal uma Carta de Princípios da Acção Social e Caritativa da Igreja. Que sentido deve ser dado a esse gesto? A Igreja faz uma avaliação positiva da acção social feita em cooperação com o Estado ou pretende alterar a sua forma de actuação?
D. JORGE ORTIGA - A Conferência Episcopal debruça-se periodicamente sobre alguns aspectos da sua acção pastoral conforme a gravidade da actualidade. Temos feito isso periodicamente. Na última assembleia foi redigida uma carta de princípios sobre a Acção Social da Igreja, mas também uma outra sobre os bens patrimoniais. Foi o momento de revisão e oportunidade para sublinhar aquilo que deverá caracterizar essas instâncias de índole social que a Igreja coordena. Aliás, um dos números dessa carta diz que oportunamente, através de uma comissão de técnicos, dever-se-á avaliar se essas organizações estão ou não a corresponder aos seus fins específicos. Por outro lado, ver até que ponto elas têm capacidade para subsistir em situações adversas. Foi feita uma análise da situação.
SOLIDARIEDADE - Como é que entende a Conferência Episcopal os acordos de cooperação estabelecidos entre o Estado e as IPSS, designadamente as de erecção canónica, segundo os quais há uma comparticipação financeira pela responsabilidade social assumida?
D. JORGE ORTIGA - Eu creio que o Estado recebe os impostos dos cidadãos para que todos tenham uma vida digna. A doutrina social da Igreja parte exactamente da dignidade inviolável de toda e qualquer pessoa. Se a Igreja presta apoio aos mais desfavorecidos ela não recebe nenhuma esmola para exercer essa acção social, mas está a colaborar com o Estado para uma melhor utilização dos dinheiros públicos. A Igreja tem que desempenhar essa missão caritativa, não numa linha de mero assistencialismo, mas como comunidade que é. Ela tem que entrar nesta batalha de fazer com que todo e qualquer ser humano possa gozar da dignidade que o caracteriza.
SOLIDARIEDADE - Não entende que haja necessidade de alterar a forma de relacionamento com as pessoas e famílias?
D. JORGE ORTIGA - A Igreja não pode descaracterizar a sua instituição e deve preservar a sua identidade que consiste em viver um amor universal de protecção dos mais pobres. Eu creio que, neste aspecto, temos cumprido a nossa missão. Quem trabalha nestas instituições ligadas à Igreja merece todos os elogios da sociedade. Há um carinho, uma dedicação, uma dose muito grande de generosidade e de espírito de sacrifício e dedicação. Essas pessoas merecem todo o nosso apreço. O trabalho que realizam não pode ser um mero trabalho social. Para a Igreja, o amor como amor e a caridade como caridade já é evangelizadora. Já manifesta Deus. Porque Deus é amor e quando se ama está-se a anunciar Deus. Agora temos que saber até que ponto podemos mostrar através da pastoral social como Deus é amor ou como Deus é Belo, é carinho e ternura. É um apelo, um desafio a quem aí trabalha. Há, nos tempos que correm, uma franja de pessoas mergulhadas na marginalidade, pessoas que se encontram na berma da estrada, que constituem um desafio para nós. Eu gosto muito da história do samaritano e da samaritana. Há muita gente que está à margem da estrada e é a essa gente que a Igreja deve prestar uma atenção, um carinho particular. Esta opção tem os seus riscos e os seus custos. Nós poderíamos sensibilizar as comunidades para que não pensem que as instituições não vivem só daquilo que os utentes pagam e o Estado dá, mas que a própria comunidade tem que assumir a sua quota-parte de responsabilidade. E o Estado devia entender essa função. As novas pobrezas não se resolvem dando de comer ou de vestir. A Igreja devia percorrer o caminho de Damasco ao encontro do pobre, vendo o samaritano e não olhando para o lado. A missão da Igreja está aí.
SOLIDARIEDADE - Houve um membro do governo anterior que defendeu que no futuro a acção social devia ser assegurada por recurso ao voluntariado, como forma de controlar os custos do Estado. É pertinente esta ideia?
D. JORGE ORTIGA - Ninguém ignora que uma grande parte das IPSS está directa ou indirectamente nas mãos da Igreja. E também ninguém ignora que a Igreja promove e estimula o voluntariado. Talvez seja por isso que nas diversas comunidades a Igreja seja capaz de dar resposta a muitos problemas, com qualidade, com custos menos elevados que outros sectores. Se olharmos para as direcções dos centros sociais paroquiais estão todos em regime de voluntariado e, para além desses, muitas outras pessoas oferecem gratuitamente, generosamente, muito do seu tempo e da sua dedicação. Agora, não é por isso que se pode pensar que é o voluntariado vai resolver os problemas. Nisso não acredito. O Estado deve assumir que ao receber os impostos dos contribuintes terá que lhes proporcionar todas as condições necessárias e não pode mendigar o serviço voluntário. Não é substituível. Todas estas instituições e estas obras necessitam de pessoas mas não só. Há outras realidades que têm o seu preço.
SOLIDARIEDADE - De que forma é que deve ser acautelada a identidade e a autonomia das Instituições ligadas à Igreja no relacionamento com o Estado?
D. JORGE ORTIGA - Tem sido uma questão que temos abordado. Quer nesta área quer noutras, como por exemplo no ensino. Temos analisado se, para prosseguirmos os nossos objectivos, sempre unidos e com as outras Instituições em articulação com a CNIS e com as Uniões Distritais, não haveria mais vantagem em nos associarmos em instituições de inspiração cristã como forma de melhor acautelarmos a nossa identidade cristã, não de mera filantropia, mas com uma formação e um serviço motivados pela caridade e pelo amor cristão. Seria eventualmente uma forma de podermos afirmar com alguma autonomia a nossa motivação e forma de agir no social, ao ponto de podermos mesmo identificar e enfrentar novas respostas sociais para públicos destinatários que mais necessitem da nossa presença solidária. É a questão que tem merecido a nossa reflexão tal como a área escolar, a área dos museus onde pretendemos ter uma rede de museus nossos.
SOLIDARIEDADE - Sente que tem havido alguma tendência para a laicização das instituições ligadas à Igreja?
D. JORGE ORTIGA - Corremos esse risco. Não consigo afirmar que ela exista mas temos que estar atentos para conseguirmos preservar a nossa identidade sem complexos e sem medos integrando--nos simultaneamente num processo comum.
SOLIDARIEDADE - No relacionamento com o Estado tem-se verificado um aumento da acção fiscalizadora do funcionamento dos equipamentos que beneficiam de apoios públicos. As instituições tuteladas pela Igreja vêm com bons olhos essa fiscalização externa?
D. JORGE ORTIGA - As instituições que têm acordos de cooperação com o Estado já prestam contas, como acontece com qualquer outra. É normal e é função do Estado vigiar pela qualidade e simultaneamente ter conhecimento das situações. Não pode é impor os seus critérios numa linha do que tem acontecido com outras instituições. Tem que admitir uma pluralidade de respostas e uma pluralidade de funcionamento. Não temos medo da fiscalização.
SOLIDARIEDADE - Essa pluralidade de que fala não é incompatível com os parâmetros defendidos pelo Estado para aquilatar da qualidade das respostas sociais?
D. JORGE ORTIGA - Sem dúvida. Quer nos equipamentos materiais quer nos equipamentos humanos eu acho que o Estado deve zelar para que haja qualidade. Sabemos que há respostas particulares que não têm qualidade mínima e não deveriam existir. Se for o caso de instituições da Igreja o tratamento deve ser exactamente o mesmo. O mais importante são os beneficiários. O que acontece é que às vezes quer-se impor às instituições da Igreja, por exemplo, todo um quadro de pessoal, que é desajustado. São esses critérios que devem ser atendidos para evitar por em causa a sobrevivência de muitas delas. Refiro-me a exigências de contratação de psicólogos, técnicos de direcção, animadores sociais... Eu não estou contra, bem pelo contrário, mas sendo imposto pode provocar graves problemas de funcionamento e sobrevivência. Às vezes não basta um título académico...
SOLIDARIEDADE - Tem notado alguma atitude persecutória em relação à actuação das instituições ligadas à Igreja? Refiro-me, por exemplo, ao caso da inspecção feita à Obra do Padre Américo.
D. JORGE ORTIGA - Pelo que sei e vejo não me parece que exista nenhuma atitude de perseguição por parte do Estado. O caso da inspecção à obra do Padre Américo está perfeitamente ultrapassado e não teve essa intenção. Há aspectos em que tem que haver evolução e haverá seguramente. Na minha maneira de ver tratou-se de um caso isolado embora essa fiscalização exista noutras casas e noutras obras. De resto, pelo que sei, tem havido diálogo e uma atitude pedagógica dessas inspecções.
SOLIDARIEDADE - À luz da Concordata como é que é entendido o direito da Igreja estar presente nas questões sociais? Há alguma implicação?
D. JORGE ORTIGA - Há sempre. A Concordata começa por um preâmbulo onde se reconhece que a Igreja, na sociedade portuguesa, desempenha um papel importante na prossecução do bem comum. Esse bem comum atinge-se através da nossa mensagem, mas sobretudo por via das concretizações no terreno. Depois, toda a Concordata assenta não já num regime de separação mas de colaboração. Dentro do princípio da universalidade, queremos servir a todos, mas também no princípio da subsidiariedade, em que o Estado tem as suas obrigações e nós as nossas.
O PAPA TEM GRANDE DEVOÇÃO A MARIA
SOLIDARIEDADE - Pela representatividade e pela proximidade em relação aos dois cardeais portugueses, o sr. Arcebispo acompanhou, por certo, com maior expectativa a eleição do Papa? Chegou a pensar que o Papa podia ser português?
D. JORGE ORTIGA - Foi um processo normal, mas tenho que lhe confessar que quando ouvia o anúncio do novo Papa e quando apareceu o nome "José" e depois foi feita uma pausa, sabendo que não eram muitos e os portugueses tinham esse nome, ainda cheguei a pensar que podia ser. No entanto, para nós a eleição, para além da componente humana, tem também, para quem acredita, uma presença do Espírito, que partindo do humano conduz esses homens à escolha da pessoa mais indicada para o momento. Por isso estou convencido de que este Papa, apelidado por muitos de tradicionalista, será um teólogo de vanguarda. A sua missão e o seu temperamento mais frio, por ser alemão, ajudaram a criar essa ideia de frustração, de que não seria aquele o Papa de que a Igreja precisava. Eu creio que foi mais uma sensação da comunicação social.
SOLIDARIEDADE - O Papa Bento XVI, para Portugal e para a Igreja portuguesa, pode continuar a obra deixada por João Paulo II, designadamente na consideração pelo culto mariano?
D. JORGE ORTIGA - Ele também tem uma devoção muito grande a Maria. Pude constatá-lo durante a audiência em Roma. Cumprimentei-o e disse-lhe que eu era um bispo português e que o assegurava nas minhas orações pessoais e também que quando fosse a Fátima aí deixaria a mesma intenção. Ele agradeceu e disse-
-me que de facto era isso de que mais precisava e pediu mesmo que rezasse a Maria pelo seu pontificado. Isto é um sinal da sua devoção a Maria e até talvez a Portugal.
Data de introdução: 2006-04-06