É de uma simplicidade desarmante. D. António Francisco dos Santos, o novo Bispo do Porto, escolheu, para a conversa com o repórter do jornal Solidariedade, uma sala lateral do Paço Episcopal, modesta, em vez do impressionante salão de visitas, virado para o terreiro, onde os retratos dos bispos antecessores parecem vigiar as entrevistas. O desconhecimento pessoal foi imediatamente transformado num descontraído diálogo, fruto das informações que o prelado possuía sobre o jornal e o jornalista. As situações em comum eram tantas que metade do tempo foi consumido em animada conversa com o gravador desligado.
Da entrevista formal retém-se a estruturação eficaz das respostas, independentemente dos temas, um conhecimento profundo do âmbito do ministério que lhe foi atribuído pelo Papa Francisco e uma preocupação com a mensagem. Que não restem dúvidas: D. António Francisco dos Santos é um Bispo do povo, de Deus e do Porto. Quer a Igreja virada para fora e o acto simbólico, que há-de testemunhar esse desígnio, é a abertura do Paço Episcopal aos visitantes. Ele mesmo gosta da rua onde muitas vezes pode vir a ser encontrado como se fosse apenas mais um entre a multidão. “A Igreja não pode ter medo de ir ao encontro do mundo”, afirma ele nesta grande entrevista ao Solidariedade. No final da conversa, um pequeno atraso obrigou-o a estugar o passo rumo à sede da PSP do Porto onde era esperado. A pé, pelo meio da multidão de turistas no adro da Sé Catedral, ninguém diria que ia ali o Bispo do Porto.
D. António Francisco dos Santos nasceu em Tendais, Cinfães, há 66 anos. É licenciado em Filosofia e especializado em Sociologia Religiosa. Trabalhou com uma comunidade de emigrantes em Paris, foi Bispo-auxiliar de Braga, Bispo de Aveiro e, desde Abril, governa a diocese do Porto, a maior do país com dois milhões e 300 mil habitantes e mais de 3 mil quilómetros quadrados.
SOLIDARIEDADE – Em algum momento imaginou que viria a ser Bispo do Porto?
D. ANTÓNIO FRANCISCO DOS SANTOS – Nunca imaginei, mas há muitas realidades que nunca se imaginam que são sonhos de Deus que vêm ao encontro dos desígnios de missão de cada um de nós. Nos últimos oito anos a minha missão era Aveiro e sempre compreendi, rezei e trabalhei como se ali fosse o lugar onde devia estar até ao limite do tempo que, canonicamente, a Santa Sé nos propõe para exercer os ministérios como bispos diocesanos. Nunca passou pela minha ideia a nomeação para Bispo do Porto.
Se tivesse sido possível escolher, o Porto seria uma diocese na sua lista?
A nossa escolha é esta. Quando dizemos sim a Deus e à Igreja temos que dizer sim ao longo da vida nas sucessivas etapas do nosso ministério. A questão não se põe dessa forma...
Digo isto pela proximidade a Cinfães, sítio onde nasceu e viveu...
A realidade do Porto é fascinante. A vida, a alma portuense, o encanto das pessoas, o acolhimento e o dinamismo desta Igreja que tem um percurso histórico de grande relevo. Ao mesmo tempo, é um testemunho muito belo do que é a Igreja de Jesus Cristo e do que é a Igreja em Portugal. Não se pode fazer a história da Igreja em Portugal sem uma referência marcada e determinante à diocese do Porto. Servi-la é sempre uma missão que apaixona a comunidade diocesana desde os leigos aos consagrados, aos sacerdotes, aos diáconos e aos bispos. É aí que se insere a decisão do Papa.
É muito diferente ser bispo no Porto, em Braga, ou em Aveiro?
Nós somos fruto de muitos contributos. Desde a nossa família, à nossa formação, ao nosso itinerário e à nossa vida como sacerdotes e bispos nas nossas dioceses. Vamos sendo moldados e trabalhados pela Igreja tal como ela é. Nesse sentido, devo muito do meu percurso de formação, desde o seminário, à diocese-berço, de Lamego, e à minha forma de exercício episcopal. Neste momento estou a servir a terceira diocese, depois de ter sido Bispo-auxiliar de Braga, Bispo de Aveiro, durante oito anos e, agora, como Bispo do Porto. Eu não seria a pessoa que sou, o sacerdote que sou e o bispo que sou sem todo o percurso, onde se inclui ainda a diocese de Paris. Toda a experiência destas cinco dioceses vão caldeando e trabalhando em mim na forma de ser e viver, na maneira de servir e agir pastoralmente a minha missão e o meu ministério.
Nestes quatro meses já deu para sentir o Porto?
Penso que sim. Quero dizê-lo sem excessos de imaginação, mas procurei sentir o Porto desde o momento em que disse sim ao Santo Padre. A partir daí procurei conhecer, na descoberta que fui fazendo, a Igreja do Porto. Desde o início do meu ministério, no dia 5 de Abril, tentei ir ao encontro de todas as pessoas e senti sempre o coração disponível e aberto para todos aqueles que encontrei. A experiência de ter visitado as 22 vigararias da diocese, de me ter encontrado com os sacerdotes, de ter participado em momentos celebrativos, de ter contactado pessoas anónimas, fez-me ter a noção de que são grandes os desafios e imensas as motivações que me mobilizam para a doação e entrega a esta Igreja e a este povo de Deus. Esta comunidade, que populacionalmente é muito grande e geograficamente é muito extensa, tem um dinamismo de acção pastoral e disponibilidade para a missão que é do melhor que há. Por isso, sentir o Porto é também saborear a beleza, a bondade e a grandeza de todos os portuenses e, isso, tenho sentido e encontrado.
Já hierarquizou os desafios para os próximos tempos?
Há desafios enormes que têm que ter uma progressividade na resposta. Não se podem medir apenas pela grandeza e densidade populacional porque, se o víssemos dessa maneira, poderia ofuscar a dimensão do encontro pessoal e da relação com cada um e cada comunidade...
E esse contacto é uma característica sua. Vai mantê-la aqui no Porto?
Não é só uma maneira espontânea de ser, mas é também uma opção consciente de viver e de servir no meu ministério episcopal. É por aí que passa a afirmação da proximidade que o Evangelho nos traz e Jesus se revela na profecia da sua missão, desafiando a Igreja a prosseguir nesse caminho. Esta proximidade vai-me permitir percorrer todas as 477 paróquias, não com a demora que eu gostaria - em Aveiro passei uma semana em cada uma -, mas será um trabalho realizado por todos os quatro bispos. É uma benção sermos quatro a servir esta Igreja diocesana. Esta partilha permite-me ter um contacto pessoal com os sacerdotes e, ao mesmo tempo, ter a oportunidade de estar com as pessoas, no seu lugar concreto, na sua vida, na sua família, nas instituições. Tenho encontrado, apesar do pouco tempo, pessoas disponíveis e generosas; instituições de grande actividade, intervenção e inserção na comunidade; gente feliz que acolhe o anúncio do Evangelho; e gente que sofre e espera o apoio, a alavancagem, a presença, as portas abertas da Igreja. O bispo tem que ser esse pórtico através do qual as pessoas entram na Igreja e a partir do qual as pessoas vão para o mundo. O bispo tem de ser, a exemplo do que diz Jesus Cristo, a porta de entrada e saída em direcção ao mundo para que aí esteja presente, sem afirmação de poder ou grandeza, que não é essa a missão da Igreja nem caminho do futuro.
É um novo estilo, à imagem do Papa Francisco...
É um novo estilo, é um desígnio e o único caminho de futuro da Igreja. É por aí que passa o anúncio da alegria do Evangelho, o serviço atento da Igreja e a profecia do mundo novo que queremos construir. Quando o Papa Francisco foi eleito, no dia 13 de Março de 2013, nós estávamos, em Aveiro, em pleno tempo de missão jubilar. De imediato, fui procurar a pedagogia pastoral que o Papa Francisco usou quando era Arcebispo de Buenos Aires. É aí que me inspiro. Não só depois da eleição como Bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal, mas na sua experiência de pastor, próximo da comunidade. Senti que os seus planos de pastoral para a diocese de Buenos Aires foram muito no sentido de uma proximidade activa e interventiva, no sentido do anúncio do Evangelho que fosse ao encontro da linguagem nas expressões de um mundo que não era cristão, que fosse ao encontro dos outros, daqueles que estão fora do adro da Igreja. Essa experiência animou-me porque convergia muito com o trabalho que estávamos a fazer. Ultimamente, com as atitudes e gestos proféticos do Papa Francisco, eu penso que somos respaldados e desafiados a não ter medo do abrir a Igreja aos que vêm de fora e procuram Deus por caminhos silenciosos, discretos e ignorados. Por outro lado, a Igreja não pode ter medo de ir ao encontro do mundo, a Igreja em saída, como lhe chama o Papa na exortação apostólica, uma Igreja que vai ao encontro daqueles em quem ninguém pensa, que ninguém saúda, que ninguém ama, a quem ninguém dirige o olhar ou a voz, a quem ninguém estende a mão, a quem ninguém procura na sua marginalidade ou solidão.
Há uma dimensão política associada ao ministério de um bispo. Como vai exercer essa função?
Certamente que essa é missão da Igreja no seu todo e no Porto também. A nossa linguagem de anúncio do Evangelho, que proclama as bem-aventuranças, não pode esquecer-se das situações que estão erradas, injustas, que esquecem os que mais precisam, que abandonam os mais frágeis. E isto não é crítica à autoridade ou aos governantes, mas a construção de um novo paradigma. Os bispos do Porto têm-no feito de forma exemplar. Tenho procurado ler e reler a história do Porto, que não é feita apenas pela voz dos seus bispos, mas é elaborada pela sua mensagem por todo este povo de Deus. O Porto é a pátria da liberdade e da construção da justiça e a Igreja tem que ser servidora desses valores. Os bispos do Porto fizeram-no, através de testemunhos corajosos, muitas vezes com o sacrifício da sua própria vida e da sua liberdade. O bispo do Porto tem que ter a memória dessa mensagem que vem dos seus antecessores para a a transmitir e aplicar no nosso tempo.
O bispo do Porto pode então ser oposição, na perspectiva política?
Nunca é oposição às pessoas, mas pode ser denunciador e oposição ao poder quando não está ao serviço das pessoas. Oposição às decisões quando, nos critérios e nos padrões dos valores cristãos, estão erradas. Oposição à concretização dessas decisões se forem prejudiciais ao bem comum.
Neste momento o que é que mais o inquieta, no Porto e no país?
Há realidades muito diversificadas, mas há elementos da vida colectiva do povo português que são em larga escala partilhados por todos. Preocupa-me essencialmente o valor e o respeito pela família. A família tem sido a grande alavanca nesta crise. Os filhos estão desempregados, os netos não têm dinheiro para frequentarem os cursos universitários e nós temos a família alargada onde os avós são a alavanca dos filhos e netos. Quanto mais fizermos pelo valor da família mais estamos a construir um Portugal feliz e justo em que a coesão social se pode consolidar. Preocupa-me a educação. Creio que é um dos elementos essenciais de um futuro de um povo. Os valores da vida e educação são valores sagrados. Tudo o que seja perturbar a paz, a segurança e o espaço onde as pessoas vivem, seja na família, seja na escola, põe em risco o futuro da nossa sociedade. Preocupa-me o emprego. Se não houver trabalho para aqueles que aqui nascem, para aqueles que aqui se educam estaremos a contribuir para um Portugal sem futuro. Depois, temos que valorizar as instituições. Creio que as instituições, de cariz social, humanitário, desportivo, cultural são um elemento essencial da nossa cultura que é muito própria, audaz, criativa, fulgurante. É neste enquadramento que está a chave hermenêutica para compreendermos o caminho que devemos trilhar. Somos todos necessários para, em conjunto, em diálogo, em harmonia, em complementaridade construirmos o futuro de todos. O que sinto é que às vezes fazemos o melhor, mas sem o sentido da unidade, sem a preocupação da comunhão, sem o esforço do diálogo, sem a assertividade das decisões colectivas que podem contar com todos. Esse é um contributo que Igreja pode dar, é uma lição que vem da doutrina social da Igreja e é a experiência que vamos tendo no terreno. O Porto, aí, é exemplo para o todo nacional.
A Igreja portuguesa tem cumprido esse papel?
Tem, seguindo alguns critérios. Primeiro, nós sabemos que não nos devemos substituir àqueles que têm por mandato do povo tomar decisões. Depois, temos que estar disponíveis, atentos e envolvidos para mobilizarmos a comunidade cristã para a solidariedade, para o valor da comunhão solidária, a acção caritativa, para a criação de redes de presença e proximidade. Temo-lo feito. A Igreja deve estar disponível para ser também participante e contribuinte para os decisores de hoje e do futuro. Tem de trazer para a ribalta os critérios e as decisões sociais e políticas naquilo que é do seu ministério. E isso nós às vezes temos silenciado. É preciso dizê-lo e tornar conhecida a doutrina social da Igreja.
A economia social solidária tem sido almofada para os efeitos da crise. Mas não será também um espécie de anestesia que acaba por mitigar e disfarçar as causas, adormecendo o povo?
Compreendo essa questão que é essencial. Há duas dimensões importantes: a primeira é que as instituições são fundamentais. Quando se trata de encontrar pessoas que não têm pão, não têm casa, que não têm dinheiro para pagar os medicamentos, que não têm apoio familiar, as instituições têm que estar aí. Nós não podemos estar à espera que se retardem respostas para que as pessoas tenham a dignidade e o conforto de que necessitam. Depois, há um elemento essencial que nos ajuda a ler a realidade portuguesa nos últimos tempos: estamos convencidos que este ciclo de austeridade e dificuldade tem o seu termo. E que este tempo de crise foi uma etapa de quem sabe que este caminho era preciso para atingirmos metas de justiça em que o peso da austeridade não sobrecarregue os mais pobres e os mais frágeis. Mal iria Portugal se esta convicção e esta esperança fosse traída. E temos que encontrar a curto prazo respostas concretas que nos digam que o tempo das dificuldades acrescidas, que foram muito pesadas para os pobres, está a chegar ao fim. E que esta experiência nos ensine a viver mais sóbrios, mais justos e mais solidários. As decisões do governo, das autarquias, nas comunidades, na Igreja, têm de ser decisões de grande acerto. E a linguagem tem que fortalecer a esperança. O pior que pode acontecer a um povo é perder o encanto do sonho e a alegria da esperança. Temos que recuperar a confiança. Em nós mesmos e naqueles que nos servem.
Como vê o papel da CNIS no mundo social solidário?
Dou graças a Deus pelo papel da CNIS, que conheço desde os tempos em que era presidente de uma instituição diocesana. Acompanho de perto e dou graças a Deus pelo trabalho realizado pela CNIS. E sinto-me muito feliz por ser feito a partir do Porto. Quero saudar o seu presidente, o padre Lino Maia, e agradecer-lhe este testemunho de dedicação, entrega, capacidade, de liderança e serviço no todo nacional. A CNIS, no horizonte da relação com o poder, que tem muita exigência e capacidade de diálogo, tem feito um trabalho notável. Devemos apoiar esta forma de ser e esta forma de agir da CNIS. Depois, tem mostrado que é uma Confederação próxima de cada um dos seus membros. Para quem está no terreno é um valor importante. E depois ainda, há uma pedagogia do positivo que tem sido feita, designadamente através do jornal Solidariedade, que se vai ensinando pouco a pouco e se vai cultivando. Vale a pena ler e conhecer. Através dos novos meios de comunicação, dá-se visibilidade ao bem que se faz. Dar visibilidade ao bem é uma das melhores formas para educar para o bem. Hoje todos nós nos apercebemos de que há uma rede de presença solidária que torna mais fortes os laços humanos. As instituições têm criado humanidade e são escola de pedagogia, de humanismo e solidariedade. Temos que realçar e destacar este valor porque as instituições sociais têm-no cumprido de uma forma muito bela e exemplar.
V.M Pinto – Texto e fotos
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