John Maynard Keynes, o maior dos economistas, defendeu que o progresso das ciências e da tecnologia haveriam de fazer obsoletos os horários e os hábitos de trabalho do seu tempo (primeira metade do século XX). Previa que, num futuro não muito distante, não fosse necessário trabalhar mais que 3 ou 4 horas por dia.
Cerca de meio século antes de Keynes, um outro economista formulava uma utopia ainda mais radical – uma sociedade de abundância e igualitária que veria a transformação do trabalho enquanto necessidade em exercício de liberdade.
Fossem estes sonhos utópicos minimamente realistas e não estariam a ler este jornal – também ele seria obsoleto. Que falta fariam, nesse paraíso terreal, as Instituições de Solidariedade Social?
A realidade é bem diversa. Infelizmente nunca como agora as IPSS foram tão necessárias. Também todos sabemos como as experiências históricas das utopias igualitárias acabaram sempre em distopias terríveis.
A experiência Estalinista na URSS, o regime dos Khmer vermelhos no Cambodja, ou, nos nossos dias, o “socialismo real” da Coreia do Norte, deveriam ser suficientes para nos manter em guarda quando a ilusões utópicas de igualitarismo.
A razão porque todas as experiências utópicas e igualitárias falham é a mesma: a igualdade absoluta é contra a natureza humana – nós, seres humanos, não somos assim!
O processo que, ao longo de milhões de anos, nos trouxe ao que somos hoje, não nos programou como seres geneticamente generosos e solidários, pelo contrário, fez de nós seres competitivos, predispostos a lutar por recursos escassos.
Fossemos nós geneticamente generosos e solidários e não teria sido necessário o Filho de Deus viver entre nós e deixar-nos (sabemos a que custo!) a mais bela de todas as narrativas.
Assumindo que toda a sociedade humana livre é, necessariamente, desigual, a questão não está, portanto, em saber se devemos ou não tolerar a desigualdade mas até onde devemos tolerá-la.
Não faria sentido colocar a questão nestes termos se a desigualdade fosse uma questão objectiva, independente e para lá da nossa vontade. Sem dúvida que, em parte, os níveis de desigualdade se devem a forças exógenas que não controlamos, ou não controlamos totalmente (tecnologia, por exemplo), contudo, o carácter mais ou menos igualitário das sociedades em que vivemos também depende de opções colectivas sobre políticas públicas, depende de nós.
Antes de mais: como medir a desigualdade?
Como sempre podemos usar a perspectiva dos stocks ou o ponto de vista dos fluxos. Se pensarmos em stocks a medida relevante é a riqueza acumulada (as fortunas, se quisermos) e a forma como ela se distribui, se pensamos em fluxos a medida relevante é a nova riqueza criada durante um período de tempo, o fluxo dos rendimentos e a forma como se distribui.
A razão entre riqueza e rendimento tem evoluído como segue no último século.
Fonte: http://equitablegrowth.org/2015/02/02/rise-inequality-honest-broker/
Nas sociedades onde podemos seguir o rasto do ratio riqueza/rendimento em períodos muito longos (UK, Alemanha e França), como se pode ver o ratio riqueza/rendimento andava pelos 500% no início do século XX, desceu significativamente desde a primeira guerra mundial e só voltou a subir por volta dos anos 70. Desde então não tem parado de crescer e, actualmente, estará não muito longe dos valores prevalecentes no início do século XX, antes da primeira guerra mundial.
Quando o ratio riqueza/rendimento aumenta, em princípio, aumenta também a parte do rendimento nacional que é devido aos factores ligados à riqueza.
Isso não seria um problema maior se a riqueza estivesse distribuída de uma forma mais ou menos equilibrada entre a população. Só que não é assim. Se utilizarmos a distribuição da riqueza nos Estados Unidos (um dos países para os quais temos dados fiáveis em períodos longos) vemos como a concentração de riqueza tem aumentado de forma assustadora nas últimas décadas.
Source: Emmanuel Saez and Gabriel Zucman, October 2014 - See more at: http://inequality.org/wealth-inequality/#sthash.5xGBuLNc.dpuf
Há cem anos atrás 0,1% da população mais rica detinha tanta riqueza como os 90% mais pobres, mais ou menos um quarto da riqueza total em cada grupo populacional. No início dos anos 70, o quinhão dos 90% “de baixo” valia 4 vezes a quota dos 0,1% do topo. Em apenas 30 anos os níveis de desigualdade voltaram ao que eram no início do século XX e a tendência é para que as coisas se agravem nos próximos anos.
Quando olhamos para a distribuição do rendimento nos Estados Unidos (mais uma vez um dos poucos sítios onde podemos seguir-lhe o rasto em períodos longos) verificamos que, desde os anos 70/80 as coisas se deterioraram significativamente.
Fonte: http://equitablegrowth.org/2015/02/02/rise-inequality-honest-broker/
Em parte isso deve-se à concentração da riqueza. Quando olhamos para distribuição do rendimento incluindo ganhos de capital (linha escura) verificamos que os 0,1% do topo recebem cerca de 5% do total, ou seja, bem mais do que acontecia antes da primeira guerra mundial. Há apenas meio século essa quota era de 1% - multiplicou por 5 em 50 anos.
Contudo não é apenas a concentração da riqueza que explica a cada vez maior desigualdade na distribuição do rendimento.
A linha mais clara mostra a evolução do rendimento excluindo os ganhos de capital. Como podemos ver, também aí, a quota do rendimento que é atribuída aos 0,1% mais afortunados vale hoje cerca de 3%, mais ou menos o mesmo que em 1913. No final dos anos 60 essa quota era pouco mais de 0,5%, isto é, também multiplicou por 5.
Não há nisto nenhum mistério. É que, ao longo deste meio século, também a distribuição dos rendimentos do trabalho se desequilibrou imenso.
O que nos trouxe aqui? Porque são as sociedades modernas tão desiguais?
Uma primeira explicação, muito simples, é acreditar que somos hoje mais gananciosos do que os nossos avós, os construtores das sociedades mais igualitárias de que há memória. Francamente não acredito. Não acredito que a natureza humana mude tanto em tão pouco tempo. Admito que hoje há gananciosos como sempre houve, nem mais, nem menos!
Aliás, provavelmente, não existe uma explicação simples e única. Na verdade, ainda sabemos muito pouco sobre o tema. O que segue é apenas uma lista tentativa de explicações parciais. A maior parte dos dados estatísticos que se seguem referem-se aos Estados Unidos por uma razão muito simples – é o país onde podemos facilmente encontrar séries estatísticas seguras e longas.
Globalização
A globalização permitiu que muitas actividades industriais emigrassem dos países desenvolvidos para os países emergentes. Como se pode ver no gráfico seguinte o sector industrial, que em 1950 ainda representava 30% do total do emprego nos Estados Unidos, em 2007 valia pouco mais de 10%.
Com as fábricas emigraram os empregos industriais que foram durante décadas a espinha dorsal da classe média e ficaram apenas os “extremos”. Ficaram os empregos altamente qualificados em actividades de ponta e não “exportáveis” (design, serviços financeiros, investigação farmacêutica, moda, etc.) e ficaram os sectores de serviços “não transaccionáveis” (restaurantes, distribuição, serviços de limpeza, cuidados de saúde, etc.), onde, em geral, o emprego é pouco qualificado e mal pago.
Tecnologia
As alterações tecnológicas, particularmente ao nível das tecnologias de informação, eliminaram muitos empregos de classe média. Muitas das tarefas administrativas que geravam empregos de classe média simplesmente desapareceram substituídas por máquinas. Quem não se lembra dos técnicos mecanográficos? Ou das dactilógrafas que processadores de texto tornaram irrelevantes? Ou dos caixas dos bancos substituídos por ATM?
Este processo pode estar apenas no início. Um estudo recente da Universidade de Oxford mostra como cerca de metade das actuais profissões poderá ser automatizada dentro de pouco tempo.
Seja como for a tecnologia e a globalização estão a fazer “desaparecer o meio” e engordar as “pontas”, seja em matéria de volume de emprego:
Fonte: http://www.technologyreview.com/featuredstory/515926/how-technology-is-destroying-jobs/
Seja em matéria de remunerações:
Fonte: http://www.technologyreview.com/featuredstory/515926/how-technology-is-destroying-jobs/
Financialização
Qualquer que seja o critério de medida, o peso do sector financeiro não pára de crescer.
Nos Estados Unidos a contribuição do sector financeiro para o PIB era de +/- 4% por volta de 1930. Actualmente deve andar pelo dobro, um pouco acima de 8%.
Se preferirmos comparar o ratio entre os activos financeiros totais e o PIB verificamos que também ele mais que duplicou desde o início dos anos 50.
Os economistas convenceram-se (e tentaram convencer os outros) que isto era uma coisa boa.
A crise de 2008 deixou claro que não era, não podia ser uma coisa simplesmente boa. Agora há quem diga que é de facto uma coisa boa, contudo, demasiado de uma coisa boa é, pode ser, uma coisa má. Há sempre argumentos!
Para o que aqui nos interessa o ponto é que o crescimento explosivo do sector financeiro ajudou à desigualdade – de facto, no sector financeiro estão alguns dos paychecks mais altos. Não se pense que estamos aqui a falar só de bancos – convém não esquecer o que gravita à volta dos bancos: sociedades de advogados, asset managers, consultores, marketeers, etc.
O super gestor – um fenómeno (sobretudo) anglo-saxónico.
No tempo de Milton Friedman, o grande economista liberal, a escola de Chicago tinha alguma dificuldade em fundamentar na teoria económica os salários dos CEO das grandes companhias cotadas em bolsa. Por essa altura não era impossível o pay-check do CEO valer 40/50 salários médios da companhia.
Hoje, passadas algumas décadas, é vulgar o CEO ganhar 350 ou 400 salários médios da companhia, ou seja, ganhar num mês o que um trabalhador médio ganha durante toda a vida.
Pay-check com 8 dígitos começam a ser comuns nas grandes cotadas. É certo que se trata de um fenómeno sobretudo anglo-saxónico. Contudo, mesmo na vetusta e austera Alemanha, encontram-se salários de dezenas de milhões de euros por ano.
O valor da imagem
Eusébio foi um grande jogador. Cristiano Ronaldo também é um jogador genial, seguramente um dos melhores do mundo.
Mas talvez as semelhanças acabem aqui. Se pensarmos no que Eusébio ganhou com a sua carreira e no que Cristiano Ronaldo factura hoje em dia, vemos que os separa um mundo de distância, o mesmo abismo que separa Stanley Mattews e David Beckam ou mesmo Messi e Maradona.
Vivemos num mundo em que a possibilidade de multiplicar uma imagem e o seu valor comercial são quase infinitos. E isso ajuda a criar fortunas no desporto, no cinema, na moda, etc. Mais uma vez não esquecer o que gravita em volta: empresários, fundos, consultores, advogados da moda, etc.
Os sindicatos já não são o que eram
As taxas de sindicalização estão a cair um pouco por todo o lado. Os trabalhadores têm hoje muito menos força negocial do que acontecia há apenas um par de décadas.
Poderíamos aumentar a lista. Por exemplo, as mudanças políticas e ideológicas que marcaram o início dos anos 80 terão sido decisivas, o poder dos media (e o poder do dinheiro que os controla) também terá o seu papel, a extrema valorização da terra urbana seguramente tem culpas no cartório. Contudo, talvez esse não seja o exercício mais importante. Seriam apenas mais umas quantas explicações parciais e tentativas.
Creio que realmente importantes são duas questões: a)- porque toleramos, em sociedades democráticas, níveis de desigualdade tão elevados? ; b)- Como sair disto, como fazer o mundo um pouco mais justo?
Ficam para outro dia.
José Figueiredo - Economista
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