ALEXANDRA LOPES, INVESTIGADORA E COORDENADORA DO PROJETO LETS-CARE

Se queremos um cuidado de qualidade, temos de ter um trabalho de qualidade

Portugal é um dos sete países da União Europeia que integram o projeto de investigação comparativa LeTs-Care (Learning from Long-Term Care Practices for the European Care Strategy), que visa identificar e difundir políticas e práticas relevantes para enfrentar os desafios dos cuidados de longa-duração.
Com o propósito de desenvolver cuidados integrados, centrados na pessoa, acessíveis e com qualidade, geradores de emprego de qualidade, a equipa de investigação LeTs-Care está a abordar questões-chave para compreender melhor os desafios, as oportunidades e as limitações dos cuidados de longa-duração, abordando três questões essenciais:
- Quais são os principais desafios que os sistemas europeus de cuidados estão a enfrentar?
- Que soluções podem melhorar a qualidade e a acessibilidade aos cuidados?
- Como é que as famílias, os prestadores de serviços, a academia e os legisladores podem trabalhar em conjunto para melhorar os sistemas de cuidados prolongados?
O projeto, que arrancou em abril de 2024 e termina no final de 2027 e é financiado pelo Programa Horizonte Europa, é liderado em Portugal pela equipa de investigadoras sociais Alexandra Lopes e Rute Lemos, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
O SOLIDARIEDADE deslocou-se à academia e conversou com a investigadora Alexandra Lopes, que desvendou um pouco o que é o LeTs-Care e como as IPSS são elementos cruciais no processo e como dele podem beneficiar.
E porque o futuro está ao virar da esquina mais próxima, “a intenção é organizar, ainda este ano, um grande evento para apresentação dos resultados, que, neste momento, estão em validação”, revela Alexandra Lopes, sublinhando: “Um grande evento em Portugal para partilhar o que já há e, assim, termos mais um momento de reflexão nesta lógica dos laboratórios de políticas Públicas”.

SOLIDARIEDADE - O que é o projeto LeTs-Care?
ALEXANDRA LOPES - Na realidade o acrónimo LeTs-Care faz alusão aos cuidados e aos cuidados de longa-duração, mas remete para um nome em extenso que é ‘Learning from Long-Term Care Practices for the European Care Strategy’ [Aprender com as práticas de cuidados de longa-duração para a Estratégia Europeia de Cuidados]. O projeto surge na sequência da publicação, em setembro de 2022, de legislação europeia para os cuidados. Estamos a assistir, finalmente, a nível europeu a passos mais substanciais, por parte da Comissão Europeia, no sentido de rever a agenda dos cuidados. A Europa é um continente envelhecido, e continua a envelhecer, e as necessidades de cuidados, muito associadas ao envelhecimento, têm vindo a acumular pressão sobre os sistemas e os países, de uma maneira geral, confrontam-se com desafios comuns. Portanto, faz sentido pensar neles a partir de soluções e de estratégias que possam ser comuns ou, pelo menos, partilhadas.

Este é um projeto que conta com sete países, dos 27 da União Europeia?
O projeto agrega sete países, mas não os 27, pois tornar-se-ia complicado de desenvolver. No projeto estão sete países, que representam, de alguma forma, a variedade de modelos de organização dos sistemas de proteção social e de saúde que temos na Europa. Assim, está Portugal, Espanha, Itália, Lituânia, Áustria, Dinamarca e Países Baixos. É uma variedade interessante de países que estão em diferentes momentos e têm diferentes tradições na área dos cuidados. No caso de Portugal, o sector das IPSS e das Misericórdias representa, de facto, a fatia de leão no que diz respeito aos cuidados, tendo uma capacidade muito grande de influenciar para onde o sistema caminha.

É aí que entra a CNIS como parceiro no projeto?
Sim e é muito importante a nossa relação com a CNIS e com o sector de uma forma geral. O Projeto LeTs-Care não é orientado para a produção de recomendações para indicar práticas, não é esse o marco do projeto, mas há um momento que é absolutamente fundador, ou seja, a forma como vamos responder aos desafios só se faz com todas as partes envolvidas, sobretudo com aquelas que têm um papel preponderante na área dos cuidados, como as IPSS.

Daí que um dos objetivos do projeto passa por envolver famílias, prestadores de serviços, academia e legislador?
Exatamente. Toda a investigação do projeto é colaborativa e integradora. Isto não se faz dentro de gabinetes, nem apenas com base em análises teóricas, tem de envolver todos os stakeholders. Até à data, e a Estratégia Europeia para os Cuidados acaba por refletir isso, tem predominado uma abordagem em que se procuram identificar casos de sucesso, que, no sector dos cuidados, são sempre os países nórdicos. Assim, tem dominado a busca das boas práticas, acreditando-se que é possível transportar essas boas práticas para outros locais, sempre numa lógica de replicação. O LeTs-Care rejeita esse modelo de replicação. As práticas acontecem em contextos e os contextos são locais, nacionais e, por vezes, subnacionais. Têm que ver com aquilo que são a História dos diferentes países, os seus marcos culturais e normativos, as suas dinâmicas sociais, económicas, políticas e até religiosas. Isto de acreditar que uma prática que é bem-sucedida num determinado contexto será, automaticamente, bem-sucedida noutro, para nós, é uma falácia. E a ciência tem produzido evidência relativamente a isso.

Porque o que funciona no norte da Europa não funciona, necessariamente, no sul…
Pode funcionar, mas não é certo que funcione. Pelo contrário, aquilo que, por vezes, à luz de abordagens estandardizadas e muito focadas em indicadores quantitativos nos podem parecer práticas particularmente positivas, elas em contexto podem ser positivas e podem funcionar bem. Então, o LeTs-Care propõe-se desvendar estes contextos, perceber o que é que funciona e o que não funciona em cada contexto e porque é que é assim.

E como é que isso se faz?
Na prática, isto traduz-se numa sequência de 18 estudos etnográficos. Foram selecionadas, nestes sete países, 18 práticas ou serviços. Em Portugal são a Teleassistência, a Assistência Pessoal e os Cuidados Continuados. Estas três práticas vão ser analisadas com grande profundidade no nosso contexto. Em Espanha foram selecionadas a Habitação Colaborativa e a Teleassistência, na Dinamarca o Serviço de Enfermagem Social e os ‘nursing homes’ (lares). Ou seja, há um conjunto diversificado de tipos de serviços que têm em comum o facto de não serem a resposta clássica que conhecemos e que existem em todos os países, como, por exemplo, as ERPI ou os SAD em Portugal, que estão amplamente estudadas. O foco empírico do LeTs-Care tem que ver com práticas novas e que são aquelas que é importante perceber qual é o potencial de transferência, mas fazendo acompanhar isso de uma análise muito cuidada de quais são os contextos em que acontecem e se desenvolveram. Se os elementos de um contexto não estiverem presentes no outro, a resposta não vai ser transferida dessa forma.

Nessa avaliação de contextos, a nível nacional, também são tidos em conta os diferentes contextos, como, por exemplo, do interior e do litoral?
Por isso dizia que os contextos são nacionais e subnacionais. Outro erro frequente é olhar para as coisas como se tivéssemos um todo homogéneo. Há o rural-urbano, mas há mais, porque o sul, o centro e o norte não são a mesma coisa. Os grandes centros urbanos não são exatamente a mesma coisa. Há uma série de camadas que têm de ser obrigatoriamente consideradas. E utilizamos a etnografia porque nos permite uma imersão a fundo no contexto, com a presença do investigador e a interação com todos os ‘players’ que se movimentam nesse contexto. E o objetivo do LeTs-Care, ao produzir este conhecimento contextualizados, é também dinamizar nos diferentes contextos todo um exercício de reflexão e de diálogo. O reconhecimento de que as coisas acontecem em contexto também envolve reconhecer que é muito difícil pensarmos fora desse contexto. Ou seja, quando discutimos em Portugal aqueles que são os desafios e as soluções, tendemos a trabalhar num espaço que é um espaço de ideias muito fechado. Isto é, trabalhamos sobre o que conhecemos e o que estamos habituados a reconhecer. Depois, há muita dificuldade em olhar e desmontar aquilo e sair da caixa. Portanto, uma das ambições do LeTs-Care é, ao produzir o conhecimento contextualizado e ao promover a partilha desse conhecimento, confrontar os contextos com contextos diferentes, para os obrigar a tomar consciência daquilo que são as características do próprio contexto. E ao fazê-lo, identificar também aquilo que são os constrangimentos.

É aí que entram os Laboratórios de Políticas Públicas, em que participam todos os agentes no terreno, entre os quais a CNIS?
Precisamente, são locais para partirmos pedra em conjunto, elaborar contexto e pensarmos. No fundo, os laboratórios são momentos mais organizados onde os stakeholders são confrontados com o conhecimento que os próprios ajudam a produzir. É como olharmo-nos ao espelho e vermo-nos de ângulos diferentes daqueles a que estamos habituados e, de repente, começarmos, se calhar, a pensar de outra forma sobre aquilo que fazemos, como fazemos e isso, também, nos tornará mais disponíveis para contemplar caminhos alternativos. Por isso, é que estes laboratórios fazem parte de um ‘work package’ do projeto que tem que ver com o desenvolvimento de ‘policies tools’. No fundo, são instrumentos, processos de aprendizagem de Política Pública, não no sentido da política partidária, mas da forma como nós identificamos e refletimos sobre problemas, como é que os classificamos em termos de prioridade e pensamos soluções para esses problemas. Quem estuda estas matérias há muito tempo, como nós, não consegue evitar a sensação de andar num círculo vicioso. Não saímos muito do sítio onde estamos, mesmo quando abordamos a inovação, é sempre muito contida. Não estando no horizonte do LeTs-Care propostas disruptivas, aliás, se alguma coisa percebemos é que não há grande espaço para disrupção, há espaço para trabalhar de forma incremental, mas é preciso pensar isto de forma diferente.

E em que fase está o projeto?
Acabámos agora o primeiro ‘work package’, que está na fase de validação pela Comissão Europeia, para depois haver a publicação. Este primeiro ‘work package’ consistiu, essencialmente, na sistematização daquilo que são os significados de conceitos-chave, que todos usamos na Europa. Não pensamos muito sobre eles e pensamos serem consensuais, mas estão longe de o ser. O que são cuidados? O que é cuidar? O que é qualidade? O que é a sustentabilidade dos cuidados? O que é o trabalhador do cuidar? Isto são coisas muito diferentes nos diferentes países. E dentro dos países também significam coisas diferentes consoante o stakeholder ou a região. E aqui, se calhar, estamos a laborar no primeiro erro, que é o de acreditarmos que partilhamos um vocabulário comum, que não partilhamos. E isso vai condicionar a forma como o próprio problema é pensado no contexto e quais os horizontes, mais ou menos, possíveis nos diferentes contextos para discutir e agir sobre um tema específico.

Essa, digamos, é uma fase fechada, apenas à espera de validação e publicação, mas o trabalho continua?
Sim, o próximo ‘work package’, que já está em andamento, é o que envolve os estudos etnográficos. Em Portugal, acreditamos que terminaremos ainda em julho o estudo da Teleassistência e após o verão começaremos com o dos Cuidados Continuados, cuja operacionalização vai ser em unidades de Lisboa. E vamos, mais ou menos, na mesma altura avançar com o da Assistência Pessoal, para o qual iremos trabalhar com alguns Centro de Apoio à Vida Independente, provavelmente, aqui no norte. Em simultâneo, começámos com um ‘work package’ dedicado ao desenvolvimento das tais ‘policies tools’, mas está ainda a dar os primeiros passos. Estes primeiros laboratórios foram mais para ver como é que os stakeholders reagiam…

E como é que reagiram os diferentes agentes, mostraram-se disponíveis e participativos?
O balanço foi muito positivo. É um formato que não é muito habitual em Portugal, sobretudo, laboratórios que juntam stakeholders que raramente se juntam. Este é um momento importante e, se calhar, foi um momento em que alguns se sentaram, pela primeira vez, à mesma mesa. Foi sem guião e sem a preocupação da representação institucional, que também é uma dimensão importante. No entanto, o que queremos é criar espaços para diálogos invulgares, diálogos sem redes de segurança, mas com muita segurança e tranquilidade, possamos, em conjunto, colocar o dedo na ferida e discutir o que é que, efetivamente, está em causa e procurarmos o que são caminhos credíveis de desenvolvimento. No final desta primeira ronda de laboratórios, em que houve uma sessão presencial e duas em plataformas virtuais, considero que foram muito positivos e ficámos bastante tranquilas com aquilo que percebemos poder ser uma disponibilidade, uma grande vontade e uma quase necessidade de ter discussões sobre temas que lhes interessam e a partir de perspetivas que não são as mais habituais. O LeTs-Care não envolve avaliação, nós não avaliamos nada e isso é importante também para a forma como estas discussões se processam. Estamos entusiasmadas com a forma de continuar isto e, agora, até de uma forma mais intensa, ou seja, termos mais momentos de encontro e mais stakeholders envolvidos.

Portanto, sentiram abertura por parte dos demais agentes?
Sentimos e não só em participar. Seria invulgar, num contexto com este tipo de enquadramento, convidarmos as instituições e elas declinarem, até porque há toda uma dimensão institucional. O que nos agradou e consideramos mais positivo foi a qualidade da participação. Confesso que estávamos, inicialmente, expectantes sobre a adesão a uma metodologia de trabalho e discussão que não é habitual. Tivemos uma resposta muito positiva e aberta e constatámos um certo sentido de urgência em discutir estas matérias e de termos que tomar decisões sobre o que vai ser o futuro próximo. Como está, não é sustentável muito mais tempo.

No seguimento disso, “temos de encontrar soluções”, estudadas as respostas, no final haverá recomendações?
Recomendações, sim, mas não necessariamente sobre cada uma das práticas. No LeTs-Care temos quatro ou cinco grandes eixos de análise e que têm relação direta com os desafios que todos os países, neste momento, enfrentam. Há um problema gigante ao nível do trabalho no sector dos cuidados. Não temos trabalhadores suficientes, é um trabalho que tem características muito específicas, muito mal remunerado, não reconhecido socialmente e duro, mas é um sector que não é viável sem trabalhadores. E se queremos um cuidado de qualidade, temos de ter um trabalho de qualidade. E este é um desafio gigante na Europa, que é o desafio do trabalho. Como é que conseguimos tornar este trabalho mais atrativo? E um dos objetivos do LeTs-Care é perceber aquilo que, em cada uma das práticas analisadas, pode ser aprendido para enfrentar este desafio do trabalho. Outro objetivo importante tem que ver com a pressão da quantidade, porque cada vez há mais pessoas a precisar de cuidados, e por várias razões. Por exemplo, em Portugal, uma dessas razões tem que ver com a erosão daquilo que são as formas tradicionais de prestação de cuidados, nomeadamente, os cuidados informais. Este é outro desafio enorme em todos os países da União Europeia. Não é possível cuidar todas as pessoas com cuidados formais, pelo que os cuidados informais vão ter um lugar e temos de perceber qual é, qual é que tem de ser, como é esse lugar e como vai ser protegido.

Os cuidados são um sector de pessoas para pessoas, mas, nos tempos que correm, a tecnologia pode ser importante?
Ora bem, têm sido observados avanços muito grandes ao nível das tecnologias para os cuidados, mas, por vezes, há uma crença, até certo ponto ingénua, de que a tecnologia pode resolver tudo. E isso não corresponde inteiramente à verdade. Apesar de tudo, há um potencial que é preciso explorar. E interessa muito perceber qual o lugar da tecnologia neste sector e quais são as potencialidades que devem ser exploradas.

Apesar de não ter como propósito fazer avaliações e recomendações, é intenção do LeTs-Care mudar atitudes e comportamentos?
Sem dúvida, a mudança é o propósito. Não faria sentido analisar para legitimar o status quo. O que está em causa é encontrar caminhos, que serão, em certa medida, de mudança, que nos permitam, com algum otimismo, acreditar que vamos conseguir dar resposta aos enormes desafios que vamos enfrentar e que não são para daqui a uma década. São para agora! Temos de ter consciência que temos muitas pessoas que se encontram numa situação muito difícil, porque não encontram resposta às suas necessidades de apoio. Temos muitas pessoas acamadas em casa sem receber qualquer tipo de cuidados!

E face ao envelhecimento crescente da Europa, este é um cenário que tende a agravar-se?
Sou otimista e continuo a defender que, em Portugal, temos de trabalhar, em paralelo, as questões da prevenção e da promoção do envelhecimento mais saudável. Portugal, no quadro europeu, é dos países com mais longevidade, mas em dois terços desse período as pessoas não têm qualidade de vida. No nosso país, para além da pressão do crescente número de pessoas a necessitar de cuidados, há ainda o longo período em que os portugueses vivem a precisar de cuidados. Portugal é, no plano europeu, o país com uma das menores percentagens do PIB alocadas aos cuidados, pelo que ter financiamento é importante, mas os recursos não são ilimitados. Por isso, temos de encontrar as formas mais eficientes e que fazem mais sentido na lógica do investimento social. Para além de que Portugal tem um outro enorme problema que é a desigualdade, que no sector dos cuidados é particularmente visível.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2025-07-09



















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