SOLIDARIEDADE - O que é o Microcrédito?
M. BRANDÃO ALVES - O Microcrédito é, hoje, uma realidade multifacetada que não é possível prender através de uma definição simplista. É, no entanto, desejável que sejamos cada vez mais os que partilhamos os valores do Microcrédito e tudo o que de muito bom com ele é possível fazer. Para isso, a sua compreensão, tão abrangente, quanto possível é, cada vez, mais desejável. O Microcrédito é, como a própria etimologia da palavra o supõe, um crédito pequeno, um crédito micro. Quando dizemos que o Microcrédito é um crédito reduzido estamos a pensar no crédito que é atribuído às pessoas, ou instituições, pelas instituições financeiras. Esta compreensão do Microcrédito é, apenas uma das dimensões da parte descoberta do icebergue com que poderíamos comparar o Microcrédito. A parte menos visível, a parte submersa do Microcrédito é muito mais importante que a concessão do crédito financeiro, embora não seja possível sem este. A parte submersa do Microcrédito não é um microcrédito; é, antes, um macrocrédito que é atribuído às pessoas que dele beneficiam; não tem natureza financeira, mas tem o sentido do muito crédito, que significa acreditar, dar confiança às capacidades que possuem muitos dos que a sociedade bem estabelecida tende a rotular de marginais. Não está muito longe de nós o tempo em que se dizia, a propósito de uma pessoa digna, “aquele Sr. é uma pessoa de crédito”, isto é, uma pessoa em quem se pode confiar, uma pessoa para quem o crédito não tem limites. Queremos que todos os beneficiários do Microcrédito sejam pessoas de crédito. Significa isto que o segredo do Microcrédito, mais do que no pequeno crédito financeiro, reside na confiança ilimitada que, de forma continuada, se vai atribuir a pessoas que dele necessitam, porque podem, sabem e querem desenvolver um negócio, que lhes permitirá, deixar de ser dependentes, tornar-se construtores do seu próprio emprego, passar a ser consideradas pessoas dignas de respeito, tornar-se mais felizes, ser contribuintes líquidos para a sociedade, que até aí apenas dava e deles nada recebia. Não sendo uma questão preocupante somos, no entanto, sensíveis a uma questão de terminologia com o Microcrédito. É que tem aparecido quem queira dar ao Microcrédito um significado diferente daquele que ele sempre teve desde que, há cerca de 20 anos, o Prof. Yunus foi o seu primeiro apóstolo no Bangladesh: o crédito para os mais pobres. Como se entende que as microempresas podem ser empresas até 10 trabalhadores, tem aparecido quem designe por Microcrédito o crédito que se atribui a todas estas microempresas. Ora este pode assumir valores que atingem os € 50 000 ou mais, que é uma quantia que não tem sentido ser pensada como o crédito a atribuir aos mais desprotegidos. Mais do que ajudar, um crédito desta dimensão poderia ser, mais uma vez, o princípio de mais um fim. Importa, por isso, reservar a expressão Microcrédito para o crédito que é atribuído aos mais pobres. Sendo o Microcrédito atribuído aos mais pobres ele não é uma solução para todas as situações dos mais pobres. Há pobres cuja promoção enquanto pessoas com dignidade terá de passar por outras soluções que não o Microcrédito: em que as soluções de subsidiação correntes continuarão a constituir a via mais adequada.
SOLIDARIEDADE – Então, quem são as pessoas que podem beneficiar do Microcrédito?
M. BRANDÃO ALVES - São várias as condições que devem ser preenchidas para se poder ter acesso ao Microcrédito. Elas não devem, no entanto, ser entendidas como condições de elitismo, mas antes como garantias de que pessoas em determinadas circunstâncias podem ter uma outra vida. O Microcrédito dirige-se a pessoas que se encontram, ou estão em riscos de se poder vir a encontrar em situação de marginalidade económica e social (exclusão), a situação mais corrente é a situação de desemprego; pessoas que têm vontade de, por sua iniciativa, criar o seu próprio emprego; pessoas que pretendem desenvolver um negócio para que possuem aptidões e capacidades resultantes, quer da sua aprendizagem, quer da sua experiência profissional anterior, isto é, possuem uma “boa ideia”; Pessoas que necessitam, para o arranque do negócio de, apenas, um pequeno montante de crédito financeiro, que pode, ou não, ser complementado com financiamentos ou activos que têm outras origens. O crédito de que necessitam não lhes pode ser atribuído pelas instituições financeiras do mercado, quer porque é demasiado pequeno, quer porque os beneficiários não são capazes de oferecer as garantias reais oferecidas. Essas pessoas estão disponíveis para poderem vir, no futuro, a prescindir de subsídios a fundo perdido destinados a consumo. Neste quadro pode pensar-se que o Microcrédito é ele, também mecanismo de exclusão, na medida em que se dirige a uma franja muito restrita dos excluídos. É uma falsa questão porque, como referi inicialmente, o Microcrédito não é solução para tudo; é solução para situações de pessoas que preenchem determinadas condições. Para as que as não preenchem há que procurar, manter e desenvolver outras soluções. Porventura, um dos maiores desafios que hoje se coloca aos que podem ter alguma responsabilidade no grande desafio da luta contra a pobreza é o de serem capazes de eliminar a mentalidade, muitas vezes ainda dominante, do pronto-a-vestir. Teremos que, cada vez mais, considerar que, cada pessoa é um caso e cada caso exige uma solução específica, um fato por medida.
SOLIDARIEDADE - Trata-se de uma postura que exige muitos recursos?
M. BRANDÃO ALVES - Estou longe de pensar que seja uma conclusão verdadeira. Como em outras circunstâncias, também aqui, o resultado da comparação dos custos com os resultados depende muito do horizonte temporal em que são considerados uns e outros.
Entre nós, isto é, no seio da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), quem pretende ter acesso a um Microcrédito começa, em geral, por se dirigir, por telefone, à ANDC, explicitando o que pretende, ao que se segue uma entrevista com o candidato, no seu local de residência ou no local em que pretende vir a desenvolver o negócio.
Reunidas as informações preliminares, dá-se início à abertura do dossier de crédito, com vista à realização de uma análise aprofundada da viabilidade do negócio e do compromisso do potencial beneficiário. Se o dossier de crédito vier a ser aprovado, este é enviado para a instituição financeira que, após uma breve análise, o aceita e financia o projecto através do depósito de crédito na conta do beneficiário.
SOLIDARIEDADE - Qual a taxa de sucesso do Microcrédito? Qual a percentagem dos créditos malparados? E a dos pedidos? Qual a evolução?
M. BRANDÃO ALVES - O sucesso do Microcrédito é o sucesso daqueles que souberam criar as oportunidades que eles próprios criaram ao pretender mudar de vida, fazendo-o apoiados, sobretudo, nas suas próprias energias. Bastaria que um único tivesse sido bem sucedido e que os outros não tivessem sido enganados para podermos dizer que valeu a pena. Podemos, no entanto, ir mais longe. Dos micronegócios financiados, cerca de 80% foram bem sucedidos. Muitos deles já não são micronegócios e transformaram-se em empresas progressivas, com permanente criação de valor. Isto significa que 20% tiveram que desistir. Poderá pensar-se que é, ainda, uma percentagem elevada. Também achamos que sim e tudo estamos a procurar fazer para que possa ser reduzida. Em particular, algumas instituições financeiras poderão pensar que, nestas circunstâncias, o risco envolvido é, ainda, demasiado elevado. Continuamos a pensar que é um risco que deve ser assumido, porque ele é o caminho por onde tem que se passar para que o risco possa vir a ser menor. Além disso, os que julgam que o risco é muito elevado não prestam suficiente atenção à circunstância de que em Portugal, como aliás na maioria dos outros países da Europa dita avançada, 75% dos estabelecimentos (até 10 trabalhadores) desapareceram cinco anos após terem sido criadas. Isto quer dizer que a percentagem de sucesso é, apenas, de 25%, enquanto no Microcrédito é de 80%. Como as empresas do Microcrédito também fazem parte daquele universo, de alguma maneira poderemos dizer que se não fosse o Microcrédito a percentagem de insucesso dos 75% seria, ainda, mais elevada. Não temos que ficar demasiado desanimados com as aparentemente elevadas taxas de insucesso. Com efeito, é com o insucesso que se aprende a ser mais robusto. Por isso, nas sociedades mais progressivas, nos primeiros anos de vida das empresas, o insucesso é muito elevado. Tal como com a criança que para começar a andar tem que ir ao chão muitas vezes, também o insucesso é condição de aprendizagem. A única condição para que o insucesso possa ser aceite como caminho de aprendizagem é que não tenha sido fraudulento ou consequência de falta de empenhamento. Crédito mal parado não significa, necessariamente, insucesso, do mesmo modo que insucesso não significa, inevitavelmente, crédito mal parado. Com efeito, pode haver crédito mal parado por circunstâncias pessoais compreensíveis, que as instituições financeiras tendem a tolerar mal, e mesmo assim o projecto continuar a poder ser bem sucedido. Um projecto pode tornar-se, também, inviável, apesar de os seus protagonistas terem satisfeito sempre as prestações do empréstimo.
Dito isto, a percentagem de créditos malparados tem vindo a ser, em média, próxima da taxa de sucesso do Microcrédito, ou seja 20%.Uma outra forma de apreciarmos o nível de actividade da ANDC é olharmos o comportamento das solicitações que chegam até nós. O ritmo de evolução do número dos pedidos tem acompanhado o ritmo do número de créditos concedidos, lentamente, mas de forma consistente. Em particular, no ano que decorre, quase já atingimos o número da totalidade do ano anterior. É perfeitamente compreensível que nem todos os que precisam de créditos pequenos se configurem com as condições do Microcrédito já enunciadas, quer porque precisam de crédito para consumo, quer porque necessitam de renegociar dívidas anteriores, ou por qualquer outra razão. Para esses terão que ser encontradas outras soluções. Em média, ao longo dos anos de actividade da ANDC, a taxa de retenção de pedidos para financiamento por via do Microcrédito tem sido, também, de cerca de 20%. Não sabemos como é que esta taxa poderá evoluir no futuro, mas gostaríamos que pudesse vir a aumentar. Para que tal aconteça é necessário, no entanto, que possam ser criadas condições para que as parcerias com as instituições de solidariedade social implantadas no terreno se possam intensificar e alargar, de modo a que os casos que nos são sujeitos para apreciação já venham convenientemente enquadrados pelo objecto do Microcrédito. Se assim for a eficácia da acção de todas as instituições tenderá a aumentar e todos lucraremos com isso.
SOLIDARIEDADE - Que relação existe entre a situação de desespero social e o empreendedorismo?
M. BRANDÃO ALVES - Uma caracterização genérica de desespero social de pouco servirá se não puder ter em conta as circunstâncias específicas de cada caso. Relacionar desespero social com empreendedorismo só tem sentido face aos casos de pessoas que consideram que se encontram num caminho sem saída, a menos que . . . um determinado conjunto de meios possam ser reunidos. Quem considerar que em circunstância alguma haverá saída, não há empreendedorismo que lhe valha. Quem estiver em situação de exclusão, mas quiser daí saltar, criando um negócio, para o qual tem uma boa ideia, mas necessita de um pequeno crédito, então essa pessoa está em condições de poder recorrer ao microcrédito e, em termos das suas circunstâncias, é um grande empreendedor. A sua iniciativa, porque tem grande probabilidade de ser bem sucedida, vai ter um efeito de imitação junto de outras pessoas que vêm que vale a pena percorrer aquele caminho e vão, também, querer transformar-se em empreendedores. Assim, com pequenos passos se pode ir passando da sociedade do desespero para a sociedade da esperança que, aqui, tem o nome de sociedade empreendedora.
SOLIDARIEDADE - A que procedimentos legais e sociais ficam sujeitas as pessoas cujos projectos de vida, baseados no Microcrédito, falharam?
M. BRANDÃO ALVES - Infelizmente, entre nós, quem falha tem sempre uma vida mais dificultada. Criou o seu próprio emprego, criou riqueza, pagou impostos e contribuições para a segurança social, mas se o negócio não corre bem fica desempregado e não tem direito ao subsídio de desemprego. Protege-se mais o desemprego do que o empreendedorismo ou, ainda, o desemprego quando associado ao empreendedorismo. Porque é que há-de ser assim? É necessário que mudemos as nossas mentes e passemos a considerar, como nas sociedades mais progressivas, que falhar de forma não fraudulenta, é aprender e que a quem aprendeu desta forma deve ser dada uma segunda, uma terceira oportunidade e, porventura mais oportunidades. Estamos a pugnar por que seja reconhecido o estatuto do microempresário, em que estas situações possam ser protegidas, não para que com isso se gaste mais dinheiro, mas porque se considera que, todas as contas feitas, a sociedade ainda fica a ganhar. Fica mais barato promover a iniciativa do que sustentar na subsidiação aqueles que daí tinham condições para poder sair.
SOLIDARIEDADE - Em Portugal quais têm sido os factores de maior resistência à implementação deste novo sistema? As instituições bancárias estão receptivas ou desconfiadas?
M. BRANDÃO ALVES - O que é novo oferece sempre desconfiança. Em Portugal, um país em que os oportunismos estão presentes em cada esquina não terão sido poucos os que olharam para a actividade da ANDC como a de mais um conjunto de pessoas que querem viver com o dinheiro dos pobres. Felizmente que esta fase parece estar ultrapassada. Não quer isto significar que o caminho já tenha deixado de oferecer solavancos. Como já salientei, uma das nossas principais dificuldades reside na impossibilidade de estarmos presentes junto dos que precisam do microcrédito, conhecendo as suas circunstâncias das suas vidas. Nunca teremos capacidade para o fazer e daí a imprescindibilidade do trabalho em rede, com as instituições que trabalham o domínio do social. Creio que no que concerne às instituições financeiras elas não são receptivas, nem desconfiadas; são objectivas, face às condições de rentabilidade do ramo de negócio em que se encontram. Normalmente, as instituições bancárias poderão estar disponíveis para subsidiar actividades com motivação social, mas quanto a negócios não estão lá para perder dinheiro. Daí que quando consideram que a via do microcrédito lhes possa trazer vantagens, estejam disponíveis para a ela aderirem.
A ANDC existe, também, para tornar possível e visível que o compromisso com o microcrédito pode ser uma vantagem para as instituições financeiras, na medida em que lhes: dá uma imagem de responsabilidade social; cria clientes potenciais de muito maior dimensão; abre perspectivas de inserção em mercados de outros territórios; permite inserirem-se num movimento internacional de promoção da microfinança em relação do qual é, hoje, difícil poder dizer-se que se está alheado, etc.
Estamos a desenvolver trabalho para que as nossas parcerias com as instituições possam alargar-se, como já sublinhei anteriormente. Ninguém duvida de que muito mais do que há cinco anos estão hoje curiosas e disponíveis para estudar a questão.
SOLIDARIEDADE - Até que ponto a situação portuguesa de crise declarada, com o desemprego a aumentar, pode propiciar a difusão desta modalidade de intervenção social?
M. BRANDÃO ALVES - O clima de desemprego não é propício, à partida, à multiplicação de iniciativas de microcrédito: por parte dos que o deveriam apoiar, porque tendem a pensar que mais vale um empregado ordeiro do que um empresário manobreiro; por parte dos que dele beneficiam porque preferem a certeza de um rendimento de quase miséria, ao risco de um bom rendimento incerto. É, por isso, que o microcrédito poderá parecer que tem maiores hipóteses de desenvolvimento quando o ambiente económico e social é expansivo do que quando é recessivo. Esta é, contudo, apenas, uma maneira de ver as coisas. Com efeito, o desemprego é também um sinal da necessidade de ajustamento estrutural das economias. Muito do desemprego é uma consequência (em Portugal também) da reestruturação e deslocalização de grandes empresas e organizações. Se assim é, há necessidade de pensar, de um novo modo, a iniciativa económica: protegendo a iniciativa de pequena dimensão, em que os empresários se agarram mais ao que criam e ao território em que fazem a iniciativa crescer.
Se a iniciativa concebida nestes termos puder ser, cultural, social e publicamente apoiada (e para isso não é preciso, necessariamente mais dinheiro) o microcrédito poderá vir a ter um papel importante a desempenhar, mesmo em tempos de crise.
SOLIDARIEDADE - O Microcrédito representa apenas uma modalidade de ajuda a pessoas carenciadas, uma ideia criativa de dar uma esmola aos mais pobres ou é uma corrente económica nova, com uma filosofia social alternativa?
M. BRANDÃO ALVES - Tenho algumas dificuldades em responder a esta questão, nos termos em que é colocada. O microcrédito não se insere numa nova filosofia social alternativa. Ela é complementar das formas de intervenção social já existentes e não substitui nenhuma delas. Quando muito poderá, ou não, em relação a cada uma das pessoas que dele poderão beneficiar, constituir uma alternativa, mas não é, certamente, uma alternativa para todas elas. O microcrédito pode, no entanto ser considerado como uma ajuda aos que dela precisam, mas não é uma esmola: todo o crédito concedido apela à construção da responsabilidade de parceiros contratantes e, por isso, terá de ser reembolsado.
SOLIDARIEDADE - Emprestar dinheiro pode não significar ajudar pessoas. Os projectos de reinserção são, de alguma forma, acompanhados? Como? E por quem?
M. BRANDÃO ALVES - Emprestar dinheiro pode não significar ajudar as pessoas; pode até significar conduzi-las para poços sem saída. No microcrédito também não existe qualquer postura de ajudar as pessoas no sentido do coitadinho. O que o microcrédito cria é uma janela de oportunidades para que cada um se possa ajudar a si próprio.
Àqueles que quiserem dar o passo em frente e assumir um compromisso firme, a ANDC garante acompanhamento e apoio nas fases de lançamento, desenvolvimento e consolidação do negócio, através de técnicos especializados, os Agentes de Microcrédito que, sempre que necessário, poderão pedir o envolvimento de apoios específicos, normalmente assegurados através de actividades de voluntariado de associados da andc.
Este acompanhamento não tem nunca o sentido de alguém se substituir ao esforço que o microempresário pode por si próprio fazer. Pretende, antes, dar a mão, para que o microempresário se sinta mais seguro nos passos que está a aprender a dar. Não poucas vezes temos ouvido dizer que mais importante do que o crédito concedido foi a palavra amiga que o acompanhou.
SOLIDARIEDADE - O Microcrédito pode ser visto como uma subversão do sistema bancário clássico, uma vez que, por exemplo, a garantia e o lucro são considerados de uma outra forma?
M. BRANDÃO ALVES - Por muito importante que possa ser, ou vir a ser, o papel do microcrédito ele, apesar de insubstituível, não é suficientemente importante para pôr em causa qualquer modo de estar das instituições bancárias que o saibam ser respeitando os princípios da boa ética financeira. Como a própria pergunta o deixa pressupor no microcrédito há garantias e há lucro. Uma parte das garantias é dada pela forma clássica, através do comprometimento de fiadores. A outra é constituída pela relação de confiança que é estabelecida entre a ANDC e a instituição financeira. O facto de a ANDC estar presente é para o banco uma garantia de que o negócio terá sucesso. O lucro, dentro de limites que sejam proporcionais à criação de valor gerado é, também, um dos objectivos do microcrédito. Ele não pode deixar de ser um incentivo para que o microempresário consolide a sua vontade de se tornar uma mulher, ou um homem, autónomo e independente dos mecanismos da subsidiação.
SOLIDARIEDADE - De que forma é que as IPSS podem participar no processo? Uma Confederação como a CNIS, que representa cerca de três mil instituições sociais, não deveria ser parceira num projecto dessa natureza?
M. BRANDÃO ALVES - A resposta a esta questão já em grande medida foi enunciada nos pontos anteriores. Não sei se a CNIS deveria ou não ser um parceiro deste projecto, porque para que o seja isso depende, em primeiro lugar, do querer da própria CNIS.
Do nosso ponto de vista a CNIS, pelo conteúdo da sua intervenção e pela dimensão que assume, através do número de instituições envolvidas, não pode deixar de ser um privilegiado potencial parceiro do microcrédito. A sua presença nos territórios da exclusão assim o exige. Contactos já anteriormente estabelecidos com a CNIS levam-nos a ter as maiores expectativas a este respeito. A iniciativa desta entrevista é mais um elemento confirmador da expectativa enunciada. A implantação de uma relação sólida e sustentável exige, no entanto, do meu ponto de vista, que responsáveis de um e outro lado saibam construir os quadros de colaboração adequados a uma relação durável que dê resposta às ansiedades dos beneficiários que em nós possam vir a depositar a sua confiança.
SOLIDARIEDADE - Qual é o balanço que a ANDC faz da actividade de cinco anos de existência?
M. BRANDÃO ALVES - Estamos muito satisfeitos com o trabalho realizado, não para pararmos e ficarmos extasiados a olhar para trás, mas antes porque consideramos que os resultados obtidos constituem um excelente incentivo para intensificarmos o nosso empenhamento. O Microcrédito é, hoje, um mecanismo de luta contra a pobreza conhecido e considerado como eficaz nas condições e objectivos que pretende atingir.
Nos primeiros cinco anos foram criados cerca de 350 negócios. No ano de 2 005 já foram financiados mais de 75, que se acrescentam àqueles.
É verdade que, para aqui chegarmos, o caminho nem sempre foi fácil. Tivemos que estar animados de uma grande persistência para conquistarmos a compreensão, quer dos que estão mais junto do mundo dos excluídos, quer das instituições financeiras, quer, mesmo, das administrações públicas. De início éramos pouco conhecidos e foram muitos os que nos olharam com desconfiança. De algum modo esta desconfiança ajudou-nos a construir um projecto mais sólido.
As dificuldades não vieram, apenas, do exterior. A implantação no terreno exigiu a formação de técnicos e a concepção de procedimentos. Em nenhum dos casos nos podíamos socorrer de experiências anteriores. As universidades não formavam nem formam, ainda, gente com o perfil adequado ao tratamento dos casos de pobreza abordados pelo Microcrédito. Foi formação que, embora inspirada em alguma prática dos nossos parceiros no estrangeiro, teve que ser inventada por nós próprios.
Tudo isto tomou tempo mas, hoje, consideramos que estamos maduros para trabalhar com maior intensidade os casos que nos são submetidos. Estamos, também, mais conscientes dos progressos que temos, ainda, que realizar. Poderemos dizer que a evolução da nossa actividade foi uma evolução cautelosa, mas adequada aos recursos que fomos podendo mobilizar.
Não podemos esquecer, também, que o Microcrédito se destina àqueles que têm iniciativa e pretendem lançar um negócio, abdicando dos subsídios que recebem a título de fundo perdido. Ora, a mobilização desta vontade é muito mais difícil em tempos de recessão do que em tempos de economia expansiva. Os últimos anos têm sido muito mais de retracção do que de expansão, pelo que foram pouco incentivadores para aqueles que queriam ter iniciativa, sobretudo quando saídos do mundo da pobreza. Os que o fizeram podem ser considerados verdadeiros heróis.
Apesar das dificuldades, as antecipações que se fazem quanto ao futuro fazem-nos crer que o Microcrédito se tornará cada vez mais necessário.
SOLIDARIEDADE - O Prof. Manuel Brandão Alves é presidente da ANDC há cerca de dois meses. Quais são as linhas estratégicas que vai seguir?
M. BRANDÃO ALVES - É verdade que se pensa, em geral, que quando em qualquer instituição há mudança de órgãos directivos se pretende sempre adivinhar o que é que vai haver de novo, nomeadamente em termos de linhas estratégicas. Devo começar por dizer que não sei muito bem o que seja isso de linhas estratégicas e duvido muito que os que delas mais falam também o saibam. Sei o que são estratégias para atingir objectivos (organização de meios para os atingir); se por linhas estratégicas se pretendem designar objectivos, então é preferível continuar a designá-los simplesmente como objectivos.
No que concerne aos grandes objectivos do Microcrédito a ANDC adquiriu um património suficientemente sólido para que não nos pareça que algo de substancial deva mudar. No entanto, cada tempo tem o seu tempo e, por isso, a nova Direcção pretende sublinhar alguns aspectos de organização do microcrédito que, com o novo tempo, melhor se adequam a um exercício mais eficiente da actividade da ANDC. Qualquer outra Direcção não deixaria de tomar opções equivalentes.
Neste sentido, gostaríamos de poder criar condições para que:
- Se intensifique, em termos operacionais, a nossa parceria com as instituições de solidariedade social que, no terreno, conhecem e acompanham as situações dos que mais precisam;
- Possa ser mais reconhecido pelas várias administrações públicas o papel que o microcrédito pode ter, não apenas na erradicação da pobreza mas, também, na criação de condições de competitividade e sustentabilidade da sociedade portuguesa;
- O voluntariado possa vir a assumir uma parte mais interventora e sistematizada na organização do microcrédito;
- A actividade da ANDC apareça, face aos nossos parceiros, como cada vez mais profissionalizada, tendo em conta os princípios que afirma;
- As parcerias com as instituições financeiras se possam alargar, tanto em termos de número, como em termos de diversidade de conteúdos.
Não descansaremos um momento para que estes objectivos instrumentais possam ser conseguidos, mas estamos conscientes de que eles são o resultado de um caminho em comum e não apenas nosso.
Data de introdução: 2005-06-23