1 - Escrevo estas Notas nas Rias Baixas, na Galiza, para cujo mar vou descansar sempre que posso e o tempo permite.
É um bom ponto para olhar para Portugal: suficientemente longe para ver de fora, com um outro olhar, menos enevoado pela proximidade e pela miopia; e suficientemente perto para poder regressar em duas horas de viagem, sempre por auto-estrada, para receber na aldeia a visita do compasso, como desta vez sucede.
Tenho aqui escrito várias vezes, nestas crónicas, que quase se não sente a passagem dessa fronteira que já não existe - o clima, a paisagem, a língua, as pessoas, são iguais aos que conheço deste lado do rio Minho, com poucas variações: é certo que o mar é mais aconchegado às terras que banha, com ondulação mais branda e cariciosa do que o mar aberto e bravo da nossa costa atlântica; o alvarinho é talvez também mais macio do que o nosso; o pão, bem melhor; e a selva urbanística é porventura ainda pior.
Mas o País é o mesmo, sendo esta Galiza onde me acolho a continuação, com outro nome, do Norte de Portugal onde vivo.
Para me sentir ainda mais em casa, desta vez até entrei em directo no programa de rádio que, fez esta Sexta-Feira Santa 18 anos, mantenho com o Pe. José Maia, a Drª Goreti Teixeira e o Dr. Victor Pinto – o Porto de Abrigo, na nossa comum cidade do Porto.
Mas há também, a outro nível, mais por dentro, diferenças sensíveis.
Por exemplo, ontem, Sexta-Feira Santa, nem uma loja encontrei aberta em vários quilómetros em volta do meu poiso: nem um supermercado, nem um centro comercial, nem uma mercearia.
E hoje, Sábado de Aleluia, quando fui à banca habitual para comprar o jornal do costume, “A Voz de Galicia”, informaram-me que, em toda a Espanha, não saíra nenhum jornal, porque que na Sexta-Feira Santa ninguém trabalha – nem mesmo os jornalistas.
2 – Ainda recordo bem o tempo em que, em Portugal, tudo estava fechado ao domingo – menos as igrejas, claro.
O mesmo sucedia nos dias feriados.
O pão que comíamos era de véspera, e tinha de ser torrado, porque nenhum padeiro cozia pão no dia de descanso.
Nem podia, que a tal se opunha a lei então em vigor.
A não ser em povoações das periferias das cidades, em que alguns padeiros coziam regueifa, que vinham vender à cidade, em furgonetas, à saída das missas.
As lojas, todas fechadas – menos os cafés e os restaurantes.
Aos poucos, essas regras, esses hábitos, tudo isso foi acabando.
A era dos centros comerciais – instituição de que temos o recorde europeu –, essas novas catedrais, que substituíram no movimento, no culto e nas peregrinações os antigos templos religiosos, foi, devagar, quase sem se dar por ela, modificando esse nosso antigo mundo pacato e regular.
As multidões que antes acorriam às missas, cumprem hoje o preceito com uma deslocação familiar ao Dolce Vita ou ao Parque Nascente, ao Continente ou ao Pingo Doce.
Mesmo se queremos ver um filme, já não dispomos hoje de nenhum cinema em edifício próprio, com a cenografia a que nos habituámos e que o ritual de ir ao cinema trazia consigo: plateia, balcão, frisas, camarotes, cadeiras de veludo vermelho, átrio com espelhos e colunas, dourados e retratos de artistas.
Só nas salas multi-qualquer coisa, num centro comercial, é que hoje passam filmes – os mesmos em todas as salas e em rápida rotação.
Aos centros comerciais, em matéria de abertura aos domingos e feriados, seguiram-se as outras lojas, em defesa da sua própria sobrevivência, ameaçada pela concorrência selvagem dos grandes potentados.
Primeiro, as lojas “gourmet”, em regra com mão-de-obra familiar.
Depois, as lojas comuns – de início, só algumas; agora, quase todas ...
E o pão-trigo, que tínhamos que torrar em tempos não muito distantes, para acompanhar as refeições de domingo, tê-mo-lo à mão agora em cada esquina, nas casas de pão quente, com mais ar e fermento do que cereal.
Durante alguns anos, o 1º de Maio, por razões de forte simbolismo, foi o último dia de descanso efectivamente cumprido, o último sobrevivente dessa exigência de encerramento nos dias de descanso obrigatório (ainda se chama assim no Código do Trabalho).
Mas nem esse resistiu durante muito tempo à rasoira dos direitos de quem trabalha.
E já há muito que, no 1º de Maio como nos demais feriados e domingos, não falta onde ir comprar os bens do nosso conforto.
E do desconforto dos outros: os que trabalham para nós no dia de descanso.
3 – Quem é do Porto, não pode deixar de honrar particularmente a memória de Manoel de Oliveira, agora falecido.
Trata-se de um genuíno cidadão do Porto e exemplo das melhores qualidades que aqui sobressaem: nascido no seio da burguesia liberal, que no Porto sempre foi sinal de civilização, de cosmopolitismo e de modernidade, aí também aprendeu a não ter outro senhor que não a si próprio.
Tem sido um início de Primavera aziago: há uns dias, Herberto Hélder, que muito marcou a minha aprendizagem poética; e agora Silva Lopes, um dos poucos economistas do espaço mediático que não proclamava como dogmas as matérias da sua ciência, antes procurava colocar esta ao serviço da felicidade dos homens.
Que é para o que serve.
(P.S.) – Numa das charlas do Raul Solnado, chamada “História da Minha Vida” – essas charlas que fizeram as delícias de quem, pelos anos 60 do século passada, ouvia os seus discos ou assistia às emissões do programa Zip-Zip, da Televisão … -, o humorista efabula, num registo de contínuo non-sense, sobre a sua vida, começando no seu nascimento e referindo, a dado passo, como ambos, ele e a Mãe, participaram esse nascimento ao Pai:
“Escrevemos ao meu Pai, que trabalhava como escafandrista em Évora e já não vinha a casa há dois anos …”
E acrescentou, para desfazer equívocos: “Mas a minha Mãe foi a Évora …”
Esta última frase pegou no discurso popular.
E assim, sempre que, nesses tempos já longínquos, alguém se pretendia referir a uma coisa bizarra, ou incompreensível, era comum expressar essa ideia de incoerência, ou de ininteligibilidade, soltando a frase: “Mas a minha Mãe foi a Évora.”
Ora, há dias, também eu fui a Évora.
Mas por uma boa razão.
Vem neste jornal.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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