A desigualdade, em abstracto, é uma coisa má. Tomando a perspectiva moral, creio que nisso estamos todos de acordo!
Mas uma coisa é a moral, outra é a ciência e, em particular, a economia.
A ciência deveria estar interessada em questões como esta: existe um trade-off entre desigualdade e crescimento? Ou seja, se queremos que a economia cresça mais devemos de tolerar níveis de desigualdade maiores?
A narrativa conservadora tende a responder sim, a narrativa progressista tende a responder não.
A narrativa conservadora diz que se coarctarmos, por exemplo com políticas fiscais progressivas, o rendimento dos mais trabalhadores e dos mais talentosos, a economia sofre porque diminuímos o incentivo ao esforço, à criatividade e ao risco. A produtividade e o investimento devem cair!
A narrativa progressista diz que quando os rendimentos são distribuídos de forma muito desigual temos um problema: os mais ricos tendem a poupar mais, logo a propensão ao consumo baixa. Com consumo mais baixo há menos oportunidades para o investimento. Também se desperdiça muito capital humano porque os mais pobres não conseguem obter formação superior, etc.
Este vosso criado já abordou o tema num dos textos anteriores. É sabido que com a revolução liberal dos anos 80 foram desmanteladas as políticas fiscais fortemente progressivas dos anos do pós-guerra, os mercados foram libertados dos fardos regulatórios e a desigualdade cresceu ao ponto de, segundo algumas métricas, estar agora em níveis próximos do início do século XX.
Deveríamos então ter assistido a um crescimento forte da produtividade e do investimento.
Como demonstrei na altura isso não aparece nos dados. A haver alguma evidência empírica vai no sentido contrário da narrativa conservadora.
Claro que uma evidência empírica tão simples não demonstra nada, não prova nada. Se prova alguma coisa é que a narrativa conservadora tem de se esforçar um pouco mais para nos convencer.
Volto a este assunto porque saíram recentemente dois estudos sobre o tema, provenientes de instituições que não podem ser acusadas de estar a soldo dos malvados esquerdistas ou dos que são contra a economia de mercado: refiro-me ao FMI e à OCDE.
O papel do FMI diz-nos que a evidência empírica mostra que quando a parte do bolo que vai para os 20% mais abonados aumenta em 1%, o crescimento económico nos cinco anos seguintes desce 0,08%, ou seja, um efeito negativo, mas pequeno. Em contrapartida, quando a quota dos 20% mais pobres aumenta em 1%, o crescimento nos cinco anos seguintes melhora em 0,38%, ou seja, um efeito mais forte.
O estudo da OCDE chega mais ou menos às mesmas conclusões embora, no caso da OCDE, a evidência empírica mostre que o que faz mesmo mal ao crescimento económico é a perda de quota dos mais pobres em relação ao resto da população. Aparentemente a parte do bolo que vai para as classes de topo parece não ter grande impacto no crescimento futuro.
Ou seja, mais uma vez toda a evidência empírica parece apontar para que mais desigualdade não implica mais crescimento, bem pelo contrário.
Mas evidência empírica é uma coisa, conhecimento científico é outra. Enquanto não compreendermos racionalmente o que os dados nos dizem a ciência não completou o seu trabalho. E, nesta matéria, o trabalho está claramente por fazer.
O livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, é sobretudo o resultado de uma longa pesquisa empírica e produziu um acervo de dados que tem ajudado a transportar o problema da desigualdade do território sempre movediço da moral e da política para o domínio do debate entre economistas. Graças ao sucesso editorial do livro teve também o mérito de trazer o debate para os grandes fóruns internacionais.
Contudo a abordagem teórica do livro de Piketty é pobre. A famosa regra de r > g, taxa de retorno do capital maior que taxas de crescimento implica mais desigualdade, tem pouco poder explicativo.
Precisamos de uma nova teoria que nos ajude a pensar com rigor este tema.
Desde logo a nova teoria deve precisar melhor os conceitos, que muitas vezes aparecem confundidos, nomeadamente a distinção entre riqueza e capital.
Uma sociedade pode ter o stock de capital produtivo estável e assistir a um crescimento forte da riqueza.
O capital produtivo faz parte da riqueza mas há muita riqueza que não é capital produtivo. Terra e rendas são hoje as formas de riqueza dominantes. Não se trata aqui de terra agrícola, que, aliás, constituía o essencial do stock de capital até à revolução industrial, trata-se agora de terra urbana, terra onde são construídos imóveis residenciais, comerciais ou outros. O quadro seguinte descreve a evolução da riqueza em França ao longo de mais de 300 anos.
Fonte: Thomas Piketty: Wealth and Inheritance in the Long Run
Como podemos ver mais de metade da riqueza nacional é actualmente constituída por imobiliário, ou seja, essencialmente o valor da terra onde está construído.
As rendas são, por sua vez, os mil e um mecanismos que permitem a pessoas ou grupos obter um direito de saque sobre uma parte dos rendimentos criados na sociedade.
Por exemplo quando contratos entre o estado e as produtoras eléctricas permitem rendas exorbitantes para essas empresas os beneficiários são os respectivos accionistas que ficam mais ricos sem que um único KW de energia adicional seja produzido ou um cêntimo de investimento real seja realizado.
O mesmo se diga dos contratos ruinosos das PPP e doutras rendas que o poder político vai criando.
Por outro lado a desigualdade no acesso à riqueza (riqueza efectiva e não capital produtivo) já não é o único factor a ter em conta. O acesso ao capital humano terá um papel cada vez mais importante no futuro e na futura geração de desigualdades sociais.
Mesmo que admitíssemos que toda a desigualdade actual se deve a diferença de esforço e talento e que não tem nada que ver com desigualdade de oportunidades (o que é um absurdo), isso já não seria válido na próxima geração – os mais ricos dão melhor preparação aos filhos e, mesmo que a escola pública permitisse eliminar parte desta desigualdade, é evidente que as redes de influências permitirão sempre aos filhos dos mais ricos melhores oportunidades de carreira ainda que com qualificação equivalente ou inferior.
Parece óbvio que não podemos analisar estes temas sem estudar a fundo os sistemas de herança e a respectiva tributação.
A teoria destas coisas está por fazer. Mas faz falta, muita falta!
Para terminar uma referência factos recentes no âmbito deste tema e que correspondem ambos a evoluções positivas.
Na Califórnia foi apresentado um projecto de legislação que visa regular a taxa de imposto das empresas pelo nível de desigualdade na distribuição dos seus salários – distribuições mais desequilibradas levam a impostos mais altos. O projecto não passou mas o simples facto de existir clima para a sua apresentação é uma evolução positiva.
Doravante as empresas cotadas americanas e inglesas vão ser obrigadas a reportar a relação entre o rendimento do Presidente Executivo e o salário mediano. Quem sabe, alguns vão ter vergonha!
Não há inqueritos válidos.