JOSÉ FIGUEIREDO

A tragédia dos Bancos

A tragédia dos Bancos

 

Creio que ainda estamos todos um pouco atordoados com a resolução do BANIF, essa prenda de Natal amarga que nos coube em sorte no final de 2015.

Se há alguma coisa que ainda me espanta em toda esta tragédia é a ausência de revolta, a escassez de indignação, finalmente o modo resignado com que assistimos a sucessivos assaltos ao bolso dos contribuintes, ao nosso bolso!

Tudo em nome da salvação dos bancos, tudo em nome da estabilidade do sistema financeiro, tudo em nome sabe-se lá do quê e mais um par de botas.

Mas porque diabo se devem salvar os bancos? Como perguntava um conhecido comentador da nossa praça: porque pode cair tudo menos os bancos? Não são os bancos empresas privadas como quaisquer outras, onde accionistas e credores têm (ou devem ter) noção do risco? Não deveriam saber, uns e outros, que se as coisas derem para o torto podem perder o seu capital?

Os políticos têm justificado a salvação dos bancos em nome de um tipo especial de credores: os depositantes. Todos podem perder dinheiro mas os depositantes não.

Penso que se trata de uma visão populista e essencialmente errada. É certo que os depositantes são, de certo modo, uma categoria especial de credores. Desde logo porque, todos, pobres, ricos e remediados, todos somos depositantes.

Não seria justo salvar os bancos indo ao bolso da pequena poupança dos economicamente mais desfavorecidos, dizem-nos!

Mas nisso todos concordamos. Só que nem todos os depositantes são pequenos depositantes. Há muita gente com depósitos gordos e não tenho a certeza que seja mais justo salvar um banco à custa dos impostos que indo ao bolso dos grandes depositantes.

Usar os impostos pode parecer mais justo na medida em que sendo os impostos razoavelmente progressivos (não é o caso em Portugal, infelizmente), em princípio, paga mais que tem mais rendimento.

Contudo, convém lembrar que, em Portugal, mais de metade da receita fiscal (+/- 56%) é constituída por impostos indirectos, isto é, impostos sobre a despesa que atingem tanto o rico como o pobre. Ou seja, usar impostos para resgatar bancos não garante equidade total no sentido de ir buscar o dinheiro a quem tem mais.

Tanto quanto consigo ver seria socialmente mais justo ir buscar o dinheiro aos depositantes, para lá de um certo valor, nos casos em que, entre accionistas e outros credores que não os depositantes e, já gora, os fornecedores comuns, não fosse possível levantar o dinheiro necessário.

O modelo de resolução que aí vem, unificado em termos europeus, não exclui a possibilidade de recorrer aos depósitos se tal for necessário e, pessoalmente, estou de acordo!

Dir-me-ão que a minha tese até pode ser defensável mas que estou a esquecer um pequeno detalhe: a estabilidade do sistema financeiro. Não vimos todos já uma corrida aos depósitos? Que seria do sistema se um belo dia as pessoas, temendo que os seus depósitos pudessem ser perdidos num banco falido, fizessem fila na porta dos balcões para levantar o seu dinheiro? E que seria de nós se, de repente, a suspeita em relação a um banco específico se espalhasse à totalidade do sistema? Não seria o caos?

Imagino que, se as pessoas acreditassem que os depósitos até 100.000 euros estão efectivamente seguros, talvez as filas nos balcões não fossem assim tão grandes… Grandes depositantes tratariam da sua vida discretamente, numa qualquer alcatifa de escritórios privados, não iriam apanhar frio ou calor na rua… Haveria turbulência mas não caos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, são resolvidos dezenas de bancos por ano e ninguém dá por nada. E também por lá os depósitos só estão seguros até 250.000 dólares (era menos antes da crise)

Mas finalmente porque são os bancos tão especiais? Porque está disponível o estado para gastar milhares de milhões de euros do dinheiro de todos nós para salvar uma empresa privada que, em muitos casos, foi arruinada por uma gestão privada incompetente quando não mesmo criminosa como é suspeito tê-lo sido em alguns casos em Portugal?

A explicação é simples: os bancos preenchem um conjunto de funções importantes e socialmente indispensáveis e, nesse sentido, são empresas especiais.

Basicamente os bancos preenchem 4 funções: gerem um sistema de pagamentos, são intermediários entre a poupança e o investimento, promovem transformação de liquidez e a transformação de risco.

A parte do sistema de pagamentos é verdadeiramente indispensável. A economia simplesmente parava se não existisse o sistema de pagamentos que a banca disponibiliza. Quando pagamos com um cartão de crédito ou fazemos transferências na internet, é um sistema de contas bancárias que está a ser movimentado.

Não será assim no futuro quando novos sistemas de pagamentos forem desenvolvidos sobre tecnologias que estão a fazer o seu caminho. Mas, durante pelo menos mais uma geração, não acredito que possamos passar sem os bancos tal como os conhecemos hoje.

Neste aspecto os bancos são uma “utility”, não muito diferentes da companhia das águas, da EDP ou da REN.

Mas os bancos também recebem depósitos (e captam fundos por outros meios) que depois emprestam para investimento ou consumo.

Pelo caminho promovem duas transformações que também são indispensáveis: transformação de liquidez e transformação de risco.

Se pretendo crédito para comprar uma casa pretendo prazos longos, dez, vinte ou mais anos. Contudo o dinheiro que financia a operação vem de depósitos que podem ser levantados a qualquer momento (100% líquidos). Creio ser evidente que só um banco (ou instituição similar) poderia promover esta transformação, aproximando depositantes que querem dinheiro à vista com investidores que pretendem pagar em prazos muito longos.

Igualmente em matéria de risco. É suposto que os depositantes querem correr risco nulo, contudo as aplicações disponíveis no mercado, seja para investimento seja para consumo, têm risco e nalguns casos risco elevado. Os bancos transformam dívida sem risco (depósitos) em dívida com risco (investimentos).

Parece, portanto, que não podemos viver sem bancos e que, de alguma forma, os bancos devem sobreviver.

Os estados estão de certo modo prisioneiros dos bancos – estes são privados, geridos como privados e muitas vezes mal, contudo, contrariamente à generalidade das empresas não podem falir ou, pelo menos, não podem falir de forma desordenada.

Obviamente esta situação é de enorme desconforto para os estados modernos. E a crise financeira chamou a atenção para o problema na medida em que, um pouco por todo o lado, foi necessário colocar dinheiro público para salvar instituições bancárias.

Como sair disto? Como libertar, no futuro, e de uma vez por todas, os contribuintes deste fardo?

Creio que há duas perspectivas básicas: a) – não mexer muito nas estruturas bancárias como as conhecemos hoje mas torná-las mais robustas; b)- mudar a estrutura das instituições bancárias.

As reformas dos sistemas financeiros que estão a ser realizadas em diversas geografias optaram predominantemente pela opção a).

No caminho da opção a), dependendo da geografia, foram adoptadas medidas diversas como regras regulatórias mais estritas, ratios de capital mais elevados, normas de liquidez mais apertadas, exigência de “testamentos vitais”, ou seja, de informação que, caso seja necessário resolver o banco, tornem a operação mais simples, proibição de certos tipos de operações mais arriscadas nos livros dos bancos (podem, no entanto, ser feitas em nome dos clientes), etc.

Curiosamente fez-se muito pouco ou nada no caminho b). É pena porque era o caminho mais promissor.

Na sequência da grande depressão, há cerca de 80 anos, fez-se, nomeadamente nos Estados Unidos, uma reforma de fundo dos sistemas financeiros sendo que um dos pilares dessa reforma foi a separação entre bancos depositários e banca de investimento, ou, como se disse na altura, a separação entre o banco depositário e o “casino”.

Se alguém quer entrar em operações com alto grau de risco (e grandes promessas de recompensa) pode fazê-lo mas não em instituições que recebam depósitos. Esse tipo de operações fica reservado para instituições – bancos de investimento, por exemplo – que não possam financiar-se com depósitos.

Essa regra só foi alterada já nos anos 90, debaixo de razoável polémica e foi uma das causas da crise financeira cujas consequências ainda estamos a sofrer.

Voltar a separar o “casino” da banca depositária poderia ter sido uma boa ideia. Não foi seguida em praticamente nenhum lado. Apenas em Inglaterra foi instituído um regime de “ring fencing” que continua a permitir a coexistência da banca depositária e da banca de investimento mas com limitações à sua “mistura”.

Mas há quem defenda alterações ainda mais radicais. Há quem defenda que os bancos depositários não possam praticamente correr riscos, se constituam como bancos de propósitos limitados (narrow banking) – tenham depósitos do lado do passivo e activos com risco mínimo como obrigações do tesouro ou títulos privados com investment grade de rating elevado.

Se a nossa preocupação é defender a todo o custo os depósitos, porque não? Como diz o outro, quem quer os fins quer os meios!

Pergunta: OK, talvez até seja possível? Mas quem vai financiar os investimentos das empresas? E a compra de casa própria? E o carro?

Bom, teriam de ser instituições especializadas e que se financiariam nos mercados financeiros através da emissão de títulos de dívida. Não os bancos universais como os conhecemos hoje, mas bancos de propósitos limitados, centrados em determinado tipo de operações.

Parece demasiado revolucionário? Talvez! Talvez o mundo não esteja preparado para tanto.

Mas pensem nalgumas vantagens. A questão da segurança dos depósitos ficaria praticamente assegurada sem necessidade de grande intervenção do estado.

Os bancos especializados, que não podem captar depósitos, teriam de ir ao mercado e financiar-se através de instrumentos de dívida. Acabaria o filme trágico, que ocorreu nos nossos bancos universais, de produtos de dívida serem vendidos de modo enganoso como depósitos. Não voltaríamos a ter histórias como as dos enganados do BES, do BPP e etc. Quem pusesse dinheiro nessas instituições sabia que não se trata de depósitos porque essas instituições simplesmente não os podem ter.

O preço do risco seria muito mais explícito. Por exemplo, financiar-se-ia, em princípio, mais barato um banco hipotecário (que empresta para comprar casa – risco baixo) que um banco virado para investimentos empresariais (risco mais alto). Esta segmentação de risco e preço também seria uma coisa boa.

Uma outra coisa boa seria o desenvolvimento do mercado de capitais dado que os bancos especializados teriam de ser muito activos na venda der instrumentos de dívida – teríamos um sistema financeiro menos “bancarizado”, ou seja, seria menos provável a captura dos sistemas políticos democráticos pelos aparelhos financeiros.

Mas é tudo bom? Não há contras?

Há sempre contras e, neste caso, existe um contra com peso. Provavelmente o custo do financiamento para as empresas subia um pedaço e, obviamente, isso não é bom.

Mas, mais uma vez, quem quer os fins quer os meios. Ou não?!

 

Data de introdução: 2016-02-07



















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