A opinião pública europeia não estava ainda refeita do choque criado pelo atentado terrorista de Nice, e já um outro acontecimento vinha abalar o velho continente. Referimo-nos à ainda recente tentativa de um golpe de estado na Turquia. Foi uma tentativa falhada, mas sangrenta, se tivermos em conta o número de mortos que resultaram dos ataques das forças sublevadas e da resposta dos militares fiéis ao regime de Erdogan, o presidente da república que, por coincidência, se encontrava fora do país. Foi um golpe surpreendente, pelo menos à primeira vista, porque, ainda não há muito tempo se tinham realizado naquele país eleições que o presidente vencera folgadamente, embora sem maioria absoluta.
De qualquer modo, a surpresa não foi total, porque a história da república turca, uma história que ainda não completou cem anos, está marcada por crises políticas graves, algumas das quais descambaram em tentativas, falhadas ou não, de golpes de estado, como aconteceu em 1960¸ 1971 e 1980. A surpresa também não foi total, porque grande parte das forças armadas, pelo menos ao nível dos quadros superiores, ainda não digeriu completamente a perda da sua liderança da vida política do país, uma perda cuja responsabilidade atribuem maioritariamente ao partido de Erdogan.
Em 1923, os militares assumiram a herança ideológica de Ataturk, sobretudo a que retirava à religião muçulmana o domínio da vida política, mas com a chegada de Erdogan ao poder, em 2007, essa herança começou a ser fortemente questionada. Até então, os militares controlavam as decisões dos órgãos eleitos pelo povo, actuando como um tribunal constitucional, ou melhor, como uma espécie de Conselho da Revolução português, no tempo do PREC. Nesse ano de 2007, depois se terem imiscuído escandalosamente no processo das eleições presidenciais, as forças armadas foram claramente derrotadas num escrutínio em que a vitória de Erdogan ultrapassou as esperanças dos próprios simpatizantes e militantes do seu partido.
Apesar de muitas tentações, o novo presidente resistiu, nessa altura, a dar um passo em frente e definitivo na islamização do país, o que torna ainda mais difícil de entender o recente golpe militar, aparentemente condenado ao fracasso, como se depreende das manifestações populares de protesto que se seguiram à notícia da sua eclosão. Erdogan não esperou muito para endurecer o seu regime. O número de cidadãos presos, alegadamente por estarem implicados no golpe, é enorme e abrange, sobretudo, membros das forças armadas de alto nível e elementos do sistema judicial. Tudo aos milhares, segundo as notícias que vão chegando, o que vem tornar ainda mais problemático o processo de adesão do seu país à União Europeia.
Bem se pode dizer que este golpe, envolto ainda em algum mistério, veio afastar a Turquia, ainda mais, do sonho europeu.
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