Creio que estamos todos ainda um pouco atordoados pela vitória de Donald Trump nas eleições americanas.
Obviamente não sei porque um candidato aparentemente tão pouco qualificado ganhou as eleições presidenciais numa das democracias mais funcionais do mundo.
Por certo, as explicações são extremamente complexas e cruzam fatores da mais diversa natureza e que ainda não compreendemos bem.
Contudo, como aqui falamos sobretudo de economia, gostaria de apresentar o meu ponto de vista como economista sabendo que, por mais peso que a economia tenha na política contemporânea (alguém disse que a economia é o novo nome da política), o homo economicus não explica tudo. E ainda bem!
Como economista acredito que o Brexit, o ascenso dos populismos europeus, a derrota quase certa do referendo constitucional italiano e, agora, a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, vem tudo do mesmo sítio, a saber, da distribuição assimétrica dos benefícios da globalização e da redução da mobilidade social ascendente das sociedades de economia avançada.
A globalização moderna (digamos dos últimos 30 anos) coincidiu com um período de grande prosperidade a nível global, ou seja, criou uma massa enorme de benefícios. Entre 1980 e 2016 a riqueza anual produzida no mundo multiplicou-se por um fator de 3,5. O problema é que esses benefícios estão longe de ter sido distribuídos de forma minimamente homogénea – houve ganhadores e houve perdedores.
O gráfico em baixo mostra como evoluíram os rendimentos reais da população global entre 1988 e 2008 nos diversos estratos da distribuição de rendimento. Ao longo do eixo horizontal o nível de rendimento cresce da esquerda para a direita, ou seja, temos os mais pobres à esquerda e os mais ricos à direita. A altura das barras mostra quanto cresceu o rendimento real em cada escalão da distribuição de rendimento.
O que podemos ver é que o gráfico tem dois picos e um buraco. O primeiro pico ocorre nos percentis do meio o que, grosseiramente, corresponde às classes médias dos países emergentes, o segundo pico ocorre nos percentis mais altos, ou seja, onde estão os mais ricos (a maior parte deles residentes das economias avançadas) e o buraco ocorre entre os percentis 80 e 95 que, a traço grosso, podemos identificar com as classes médias, médias/ baixas das economias ocidentais.
Ou seja, num mundo onde todos ganharam alguma coisa, as classes médias baixas das sociedades de capitalismo desenvolvido não ganharam praticamente nada nos últimos 20/30 anos.
É perfeitamente natural que esses estratos populacionais estejam em modo de revolta e que o exprimam através dos veículos que vão aparecendo fora do sistema.
Notar que o rancor dessa classe de perdedores se dirige tanto para cima como para baixo.
Para cima dirige-se às elites sejam elas económicas (os mais ricos), intelectuais ou políticas bem como aos media mainstream que, aparentemente, os representam.
Para baixo dirige-se aos que, estando abaixo na escala socio-económica, são vistos como concorrentes desleais no mercado de trabalho ou simplesmente como subsídio dependentes de um estado social que a classe média continua a acreditar que é ela que paga.
Por todo o lado o retrato robot dos que apoiam e votam nos diversos populismos tem uns quantos traços em comum: pertence à classe média/média baixa, aos escalões etários mais altos, tem menores qualificações académicas e vive fora das grandes cidades. Tipicamente os que podem reclamar que a globalização os deixou para trás.
Odeiam as elites que não os compreendem, não os ouvem e não se preocupam minimamente com a sua sorte.
Mas também odeiam os de baixo. Tratando-se de gente com poucas qualificações, têm em geral empregos onde de alguma forma os imigrantes concorrem e deprimem os salários.
Na verdade a narrativa do roubo dos empregos é falsa. Os Estados Unidos ou o Reino Unido podem ter perdido alguns empregos com a globalização e com a deslocalização de algumas indústrias. Contudo, as duas economias estão próximas do pleno emprego apesar de terem recebido muitos imigrantes. Isso quer obviamente dizer que por cada posto de trabalho destruído pela globalização muitos outros foram criados.
O problema é que os postos de trabalho criados foram sobretudo nos extremos da distribuição: empregos em serviços com poucas qualificações e baixos salários (distribuição alimentar e não alimentar, serviços de segurança ou saúde, etc,) ou setores de ponta (tecnológicas, financeiras, etc.) com superqualificações e com salários elevados. No meio pouco ficou!
Ou seja, embora a narrativa do roubo dos empregos seja manifestamente falsa já não é falso que a globalização tenha degradado o estatuto sócio/económico relativo das classes médias nas sociedades de capitalismo desenvolvido. A revolta é perfeitamente compreensível!
Um segundo problema é a redução da mobilidade ascendente.
Uma das virtudes do capitalismo é que, em teoria, o poder económico deixou de estar necessariamente ligado às condições em que se nasceu. Nos tempos aristocráticos quem mandava e quem obedecia estava determinado para todo o sempre por condições de nascimento. Com o capitalismo, mesmo o mais humilde trabalhador pode sempre pôr a questão do patrão nestes termos: é ele mas podia ser eu!
A mobilidade social é uma das marcas identitárias do capitalismo moderno – o capitalismo moderno é, em teoria, uma meritocracia.
A escola pública é a infraestrutura básica da mobilidade social. Com a escola pública universal, todos, mesmo os mais pobres podem, em teoria, adquirir os conhecimentos que permitem disputar os cargos mais elevados. Por outro lado, sendo o sistema uma meritocracia, uma boa formação académica era, de certa forma, uma garantia de ascensão social.
Mas esta narrativa está em crise, duplamente em crise.
Por um lado verifica-se que, cada vez mais, as condições de nascimento são relevantes para o sucesso profissional. Nascer dos pais certos, com as ligações sociais certas, com a network apropriada é decisivo no desenhar de um percurso profissional.
Por outro lado, hoje em dia é tudo menos garantido que uma boa formação académica seja uma garantia de acesso a carreiras profissionais bem sucedidas.
Basta ver os salários que atualmente são oferecidos em início de carreira mesmo a alunos brilhantes em muitos ramos académicos. Já não é apenas um problema dos cursos “exóticos” em geral proporcionados por universidades privadas. Começamos a ver o mesmo fenómeno nas engenharias, arquitetura, etc..
O sonho da classe média das sociedades de capitalismo evoluído (uma vida económica estável e uma porta aberta para cima) está manifestamente em crise.
Creio que o ascenso dos populismos é a expressão política desse desencanto. Julgo que é por isso que Trump ganha e que, porventura, outros populismos chegarão ao poder.
Perante isto o pior que os progressistas do mundo poderiam fazer seria entregar-se ao desespero. A hora é de luta e não de desespero.
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